PARA LÁ DA LÓGICA
Vejo-te entusiasmada com a camisola.
– É para o teu pai – dizes-me com um
sorrisinho malandro, esquecida do presente.
Acompanho-te no sorriso para te
sossegar, sem te recordar que o pai morreu no ano passado.
Deixo-te entregue ao tricot e vou-me
embora.
– Margarida Maria! – Oiço chamar.
Volto-me e aguardo que a diretora me alcance. – Precisamos falar.
Sento-me, disposta a ouvir.
Relata-me as tuas fases de esquecimento, cada vez mais frequentes, e a
necessidade de acompanhamento médico regular.
Nada mais lógico, eu sei, mas
incomoda-me aquele jeito autoritário de conduzir cada conversa. Podia dizer-lhe
que também eu sei o que é melhor para ti, mas calo-me, cansada de chorar por
dentro, cada vez que não te recordas de quem sou.
Afasto-me, sem a encarar, evitando
falar o que penso e dirigindo para ti um último olhar.
Terminaste mais uma carreia e
aprecias o andamento da manga. Vejo-te uma chama de amor no olhar. Quem sou eu
para a apagar?
Pelo caminho relembro os ditames da
diretora. É necessário estimular-lhe a memória. Vejo nessa determinação uma
dose de bom senso e imagino já modos de te cativar a atenção. Estabeleço
mentalmente uma série de exercícios que poderemos fazer em conjunto. Penso em
jogos, em leituras, em fotografias. Começo a organizar a rotina, que deverá ser
tudo menos uma rotina, caso contrário não te cativará.
Dou uma última revisão ao esquema.
Parece-me excelente.
Vou direito à estante e procuro o
último álbum de fotografias. É já antigo. As mais recentes estão no computador.
Escolho algumas, passo-as para o tablet.
Hesito. Talvez fosse melhor imprimi-las. Arrisco. Quem sabe as novas
tecnologias me ajudam a trazer-te ao presente.
Há um mês que iniciámos estas
brincadeiras, como lhe chamas. Hoje fazemos palavras cruzadas. Sempre foste boa
nisso. Agora, quando a palavra não te vem de imediato, sinto-te triste,
insegura. Contudo, não é isso que se passa hoje. Tens apresentado uma memória
excelente, digna dos teus melhores dias. Percebo que queres dizer-me qualquer
coisa, mas falta-te coragem ou procuras a forma melhor de o fazer.
– Podemos parar um pouco? –
perguntas-me.
Coloco a revista em cima da mesa e
olho-te:
– Sentes-te cansada?
Com a cabeça dizes-me que não.
Depois agarras-me nas mãos, acaricias-mas:
– São tão jovens. A pele suave… bem
diferentes das minhas. Não quero parecer egoísta, nem cobarde, mas tenho um
pedido para te fazer.
– O que quiseres mãezinha.
– Devemos respeitar o tempo,
Margarida Maria, saber quando chegou a hora de deixá-lo impor-se vitorioso.
Ultimamente tem sido mais fácil lembrar-me das coisas, mas isso não significa
que a minha vida se tenha tornado mais fácil.
Olho-te com interrogação e quando me
vou manifestar, interrompes-me:
– Espera, deixa-me acabar. Quando
somos velhos e ficamos sozinhos, rodeados por outros como nós, o pior que temos
é a realidade.
– Se eu pudesse – tento explicar-te
o que já sabes.
– Eu sei, minha filha. Eu sei que te
dói deixar-me aqui e que só o fazer porque não há alternativa. Juro-te que
compreendo, mas isso não evita que me sinta só e triste. Sabes quando sou
feliz?
Digo-te que não e tu prossegues com
um sorriso:
– Quando não me lembro que o teu pai
morreu e penso que vai entrar a qualquer momento. Quando acho que tu ainda és
uma criança que precisa de mim. Quando acredito que no Natal, a família se vai
reunir à mesa. Sou feliz quando o meu passado é o meu presente. Por isso,
queria pedir-te que me permitisses esquecer.
Não é lógico o que me pedes, mas
como posso eu sobrepor a lógica à felicidade. Afinal, isso é tudo o que quero.
Que sejas feliz.
Guardo as palavras cruzadas e
prometo voltar no dia seguinte, só para te ver.
Beijas-me de novo, agora com uma
ternura ainda maior, talvez por receares amanhã não saberes quem sou, e
recomendas-me:
– Não te esqueças! Cumpre tudo o que
prometeste e se algum dia eu não souber quem tu és, não fiques triste. Não é
por falta de amor, é por falta de presente.
Quita Miguel
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