quinta-feira, 25 de setembro de 2014


PARA LÁ DA LÓGICA

 
Vejo-te entusiasmada com a camisola.

– É para o teu pai – dizes-me com um sorrisinho malandro, esquecida do presente.

Acompanho-te no sorriso para te sossegar, sem te recordar que o pai morreu no ano passado.

Deixo-te entregue ao tricot e vou-me embora.

– Margarida Maria! – Oiço chamar. Volto-me e aguardo que a diretora me alcance. – Precisamos falar.

Sento-me, disposta a ouvir. Relata-me as tuas fases de esquecimento, cada vez mais frequentes, e a necessidade de acompanhamento médico regular.

Nada mais lógico, eu sei, mas incomoda-me aquele jeito autoritário de conduzir cada conversa. Podia dizer-lhe que também eu sei o que é melhor para ti, mas calo-me, cansada de chorar por dentro, cada vez que não te recordas de quem sou.

Afasto-me, sem a encarar, evitando falar o que penso e dirigindo para ti um último olhar.

Terminaste mais uma carreia e aprecias o andamento da manga. Vejo-te uma chama de amor no olhar. Quem sou eu para a apagar?

Pelo caminho relembro os ditames da diretora. É necessário estimular-lhe a memória. Vejo nessa determinação uma dose de bom senso e imagino já modos de te cativar a atenção. Estabeleço mentalmente uma série de exercícios que poderemos fazer em conjunto. Penso em jogos, em leituras, em fotografias. Começo a organizar a rotina, que deverá ser tudo menos uma rotina, caso contrário não te cativará.

Dou uma última revisão ao esquema. Parece-me excelente.

Vou direito à estante e procuro o último álbum de fotografias. É já antigo. As mais recentes estão no computador. Escolho algumas, passo-as para o tablet. Hesito. Talvez fosse melhor imprimi-las. Arrisco. Quem sabe as novas tecnologias me ajudam a trazer-te ao presente.

 

Há um mês que iniciámos estas brincadeiras, como lhe chamas. Hoje fazemos palavras cruzadas. Sempre foste boa nisso. Agora, quando a palavra não te vem de imediato, sinto-te triste, insegura. Contudo, não é isso que se passa hoje. Tens apresentado uma memória excelente, digna dos teus melhores dias. Percebo que queres dizer-me qualquer coisa, mas falta-te coragem ou procuras a forma melhor de o fazer.

– Podemos parar um pouco? – perguntas-me.

Coloco a revista em cima da mesa e olho-te:

– Sentes-te cansada?

Com a cabeça dizes-me que não. Depois agarras-me nas mãos, acaricias-mas:

– São tão jovens. A pele suave… bem diferentes das minhas. Não quero parecer egoísta, nem cobarde, mas tenho um pedido para te fazer.

– O que quiseres mãezinha.

– Devemos respeitar o tempo, Margarida Maria, saber quando chegou a hora de deixá-lo impor-se vitorioso. Ultimamente tem sido mais fácil lembrar-me das coisas, mas isso não significa que a minha vida se tenha tornado mais fácil.

Olho-te com interrogação e quando me vou manifestar, interrompes-me:

– Espera, deixa-me acabar. Quando somos velhos e ficamos sozinhos, rodeados por outros como nós, o pior que temos é a realidade.

– Se eu pudesse – tento explicar-te o que já sabes.

– Eu sei, minha filha. Eu sei que te dói deixar-me aqui e que só o fazer porque não há alternativa. Juro-te que compreendo, mas isso não evita que me sinta só e triste. Sabes quando sou feliz?

Digo-te que não e tu prossegues com um sorriso:

– Quando não me lembro que o teu pai morreu e penso que vai entrar a qualquer momento. Quando acho que tu ainda és uma criança que precisa de mim. Quando acredito que no Natal, a família se vai reunir à mesa. Sou feliz quando o meu passado é o meu presente. Por isso, queria pedir-te que me permitisses esquecer.

Não é lógico o que me pedes, mas como posso eu sobrepor a lógica à felicidade. Afinal, isso é tudo o que quero. Que sejas feliz.

Guardo as palavras cruzadas e prometo voltar no dia seguinte, só para te ver.

Beijas-me de novo, agora com uma ternura ainda maior, talvez por receares amanhã não saberes quem sou, e recomendas-me:

– Não te esqueças! Cumpre tudo o que prometeste e se algum dia eu não souber quem tu és, não fiques triste. Não é por falta de amor, é por falta de presente.

Quita Miguel

 

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