ANGELINA
Levantou-se cedo, arranjou-se de
modo elegante e desceu para o pequeno-almoço. Àquela hora eram poucos os
pensionistas na sala de refeições. Uma empregada ia servindo os que demonstravam
maiores dificuldades. Angelina, felizmente, mexia-se muito bem. Mais devagar do
que antes, é certo, mas com bastante desenvoltura para os seus oitenta anos.
– Hoje está toda bonita – disse-lhe
a empregada.
– A minha neta vem buscar-me para
irmos almoçar. Vai trazer o marido para eu conhecer – informou orgulhosa.
Assim que acabou de comer, subiu ao
quarto para ultimar os preparativos. Colocou um chapéu e olhou-se ao espelho. Depois
riu sozinha, recordando os tempos em que ficava horas admirando a sua imagem
refletida, indecisa no que vestir para sair com o Manuel. Agora, sentia a mesma
inquietação. Tirou aquele chapéu e experimentou outro. Nesse momento, entrou a
empregada para arrumar o quarto.
– Onde é que a dona Angelina vai
toda aperaltada? Temos festa?
– A minha neta vem cá. Diga-me lá, ó
Cremilde. Acha que estou bem assim?
– Claro que está, está muito
elegante.
– Não sei. Talvez fosse melhor não
levar chapéu. Chapéu é coisa de gente velha, não é?
– E a senhora é uma jovem, está é
muito bem disfarçada – respondeu Cremilde, rindo. – Vá lá. Sente-se aí um
bocadinho, enquanto eu arrumo o quarto, e fale-me um pouco da sua neta.
A neta fora estudar para Barcelona,
por lá ficara e ali fizera a sua vida. Casara com um espanhol e era raro vir a
Portugal, mas telefonava-lhe muitas vezes. Não lhe escrevia, porque os olhos de
Angelina já não eram lá grande coisa, e não gostava que fossem os outros a ler-lhe
as cartas. Uma carta é algo muito pessoal.
– Sabe, Cremilde, tenho muita pena
de já não poder ler um livro, mas estas cataratas. A minha neta quis levar-me
para Barcelona para me operar, mas já estou velha para essas andanças. O meu
lugar agora é aqui, à espera que Nosso Senhor se lembre de me chamar. Nunca
gostei de dar trabalho a ninguém e não vou começar agora, depois de velha.
– Velha, velha, mas uma velha toda
jeitosa. Venha cá, que eu ajudo-a a escolher uma roupa. Vamos aqui fazer uma
produção digna duma diva do cinema.
Cremilde gostava de trabalhar no
lar. Dava-lhe prazer poder alegrar o resto de vida dos que escolhiam aquele
lugar como derradeira morada.
Angelina colocou um vestido florido
em tons de azul e um pequeno chapéu de cetim de tom celeste.
– Vá lá, uma voltinha – desafiou
Cremilde, sorrindo.
A cara de Angelina resplandecia de
felicidade, preparando-se para o encontro. Pegou na mala e desceu para o
jardim. Faltava ainda uma hora para a neta chegar, mas preferia esperar no meio
das flores, assim sentia-se menos ansiosa e parecia que o tempo passava mais
depressa. Escolheu um banco virado para o portão da entrada. Poderia vê-la mal
colocasse um pé ali dentro.
Na sala de refeições, as empregadas
atarefavam-se a preparar tudo para o almoço. Das janelas podiam ver Angelina
sentada, costas bem direitas para não amarrotar o vestido.
O almoço terminou, os velhotes
dispersaram-se entre a sala de televisão, a sala de leitura e os quartos, e
Angelina permanecia no banco de jardim.
Cremilde foi até lá.
– Venha para dentro, come qualquer
coisa, e quando a sua neta chegar sai com ela.
– Não, não. Prefiro esperar aqui.
– Então vou-lhe buscar alguma coisa
para comer. Já são duas horas.
– Não, obrigada. A minha neta deve
estar a chegar. Eu espero por ela para almoçar.
Cremilde voltou para dentro
destroçada. Como era possível que alguém criasse expetativas e depois não
aparecesse, nem sequer telefonasse? Foi à secretaria, procurou o número de
telefone da neta e ligou-lhe, disposta a dizer-lhe das boas e das bonitas, mas
a chamada foi direta para a caixa postal.
As horas passavam, o sol ia descendo
no horizonte e Angelina recusava-se a entrar. Se a neta dissera que vinha, ela
viria.
Em breve teriam de a trazer para
dentro. Começaria a refrescar e não poderia continuar ali. A solução seria
dar-lhe um calmante desfeito no chá, e quando adormecesse, colocá-la no quarto.
Cremilde sentou-se ao seu lado com
duas chávenas.
– Vai-me fazer companhia neste chá.
E não me diga que não, que fico ofendida.
Angelina pegou na chávena, mas não
bebeu. Não conseguia entender o que acontecera. A neta nunca a deixaria à
espera, a não ser que algo muito grave tivesse acontecido. Sentiu medo. Uma
lágrima dançou-lhe nos olhos, no momento em que o portão se abriu e a neta
apareceu na sua frente.
Ao ver a avó, correu na sua direção e
ajoelhando-se à sua frente, disse:
– Ó avozinha desculpa, deves estar
tão preocupada, mas não havia como te avisar. O carro avariou, ficámos sem
bateria no telemóvel e ninguém parava para nos ajudar. Sabes aquelas alturas em
que parece que todo o universo conspira contra nós? Mas, depois de nos fazerem
sofrer tanto, os anjos acabaram por ter pena de nós e colocaram no nosso caminho
um polícia simpático, que nos trouxe até aqui. Foi o dia mais longo da minha
vida.
– Pois o meu, minha filha, está
apenas começando! – respondeu Angelina, beijando-a na testa.
Quita Miguel
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