quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Mais um conto publicado, desta vez na coletânea «O Futuro está já ali» da Pastelaria Studios.

«Sem Culpa» aborda o impacto que o nascimento de uma criança com Síndrome de Down pode trazer a uma família.

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quarta-feira, 26 de novembro de 2014


SONHO DE VIDA

Nadine respirou fundo, sentindo-se plena. Nunca gostara de comédias. Os filmes que a faziam chorar, esses sim, eram filmes de verdade. Vivia cada minuto como se fosse um personagem, não um qualquer personagem, mas aquele que sofre, o que ninguém respeita e que todos ridicularizam ou ignoram. Sentia-se bem com esse sofrimento.

Deixou o cinema e caminhou pela avenida sem destino. Não via sequer em que direção ia, seguia apenas, deixando que um pé se colocasse na frente do outro. Quando deu por si estava na beira do rio. Sentou-se e fantasiou um encontro, como os que só acontecem nos filmes e, tal como esperara, ninguém apareceu.

No caminho para casa, comprou uma revista, daquelas que mostram o mundo feliz das pessoas que são alguém, que todos reconhecem e admiram. Gostava de as folhear, idealizando-se em cenários tropicais ou estâncias de neve, lugares que a vida ameaçava nunca lhe dar a conhecer. Mesmo assim, sonhava e isso deixava feliz.

Quando colocou a chave à porta, a magia desfez-se com um: «Estava a ver que nunca mais chegavas. Vê lá se vais fazer o jantar, que o teu pai não tarda aí.»

Bem-vinda à realidade. Foi para a cozinha e, com rapidez, passou de princesa a gata borralheira. Quando, após o jantar, acabou de arrumar tudo, fechou-se no quarto. Desejava estar sozinha de modo que ninguém pudesse interromper o seu divagar. No entanto, o sossego durou pouco, já que a irmã, nessa noite, resolveu não sair. Espaçosa como era, apossou-se da revista e só a largou depois de a ter lido de uma ponta à outra.

– Já viste este concurso? Oferecem uma viagem a quem escrever uma história sobre a sua vida. Tu, que tens a mania que sabes escrever, até podias concorrer. Não que a tua vida tenha alguma coisa para contar, mas podes sempre mentir – disse a irmã, atirando-lhe com a revista.

A verdade doía, porém via-se forçada a concordar que a sua existência era um dia-a-dia sem história e, ainda que mentisse, com certeza alguém escreveria algo melhor. Para quê dar-se ao trabalho? Fechou a revista e deitou-se. Nessa noite, não foi capaz de sonhar. Era como se a imaginação estivesse bloqueada na realidade e a mente nada mais visse do que um apartamento nos subúrbios; a mãe, dobrada no sofá da sala, a terminar mais um vestido para uma das poucas freguesas que ainda restavam; o pai a ler a Bola ou esparramado no sofá em frente à televisão a ver futebol; a irmã achando-se superior a todos porque trabalhava numa boutique.

Nadine, terminado o liceu, apenas conseguira emprego como caixa num supermercado. Para ajudar a transcorrer cada dia, socorria-se da imaginação. Ao receber os pagamentos, deixava o pensamento voar até um dia no futuro, em que um charmoso e rico rapaz se tomaria de encantos por ela e a levaria dali, para viver numa bela casa virada para o mar, plena de criados para a servirem. Pena que esse rapaz tardasse em aparecer. A maior parte das pessoas que atendia, nem a olhavam. Seguiam no pequeno ecrã o registo de cada produto, colocavam o cartão de crédito na ranhura do terminal e aceitavam o recibo, sem nunca lhe fixar o olhar. Se lhes perguntasse de que cor era o seu cabelo, se era curto ou comprido, ou mesmo se usava óculos, ninguém saberia dizer.

– Mamã, mamã. É a Ofélia da novela.

– Não, amor. É só uma empregada de supermercado.

Aquele «É só» mexeu com ela. Como «É só»? Ela não «era só», ela «era uma». Nesse dia, saiu do supermercado decidida a fazer ver àquela gente que não se limitava a «ser só».

Toda a noite, apesar das insistentes reclamações da irmã, não apagou a luz. Ficou a escrever até os primeiros raios de sol lhe baterem na cara. Afinal, o prazo do concurso estava prestes a esgotar-se e Nadine estava decidida a vencê-lo. Sempre queria ver se, depois disso, mais alguém iria dizer que ela «era só» uma empregada de supermercado.

Tão forte determinação espantou-a a si mesma. Nunca antes lutara por nada, sempre dera tudo por perdido logo à partida e agora, estava ali, agarrada a uma luta que era bem mais do que isso. Era uma vingança por toda a invisibilidade que sempre sentira.

No dia 20 de Agosto, levantou-se bem cedo e correu para a banca dos jornais. A revista já chegara, mas ainda estava no pacote à espera que o Senhor Paulo tivesse tempo para cortar o atilho, conferir o conteúdo e colocá-la à venda.

– Vá lá, Senhor Paulo. Abra primeiro aquele pacote. Por favor!

– Ó rapariga, mas o que é que te deu para todo esse desassossego? Vá, vamos lá ver o que é que isto tem.

O coração de Nadine batia acelerado, quando folheou a revista. Paralisou. Permaneceu estática, sem conseguir pensar e sem saber o que fazer.

– Então rapariga. Tanta pressa e agora não dizes nada.

– Senhor Paulo, Senhor Paulo.

– Sim rapariga, desembucha, quem é que se divorciou, desta vez?

– Senhor Paulo, eu ganhei! – gritou, agarrando-se ao pescoço do jornaleiro. – Eu ganhei! Eu ganhei! Eu ganhei!

O homem sorriu, sem saber do que ela estava a falar. Contudo, em breve, todos tomariam conhecimento.

A viagem que recebeu como prémio foi melhor do que qualquer dos seus sonhos, porque teve um gosto de realidade. O príncipe encantado não apareceu até hoje, mas Nadine foi capa da revista no mês seguinte, e isso ninguém lhe poderá tirar.
 
Quita Miguel

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Baile
Velho ou jovem, homem ou mulher, não há quem fique longe do baile.
Exibindo alguma joia ou adorno de baixo valor, a vila bamboleia, namorando ao murmúrio da banda. É que o verdadeiro amor é vivido, ouvindo o que de melhor é idealizado.
O bombo invade o ar, ao lado do adufe e da viola.
A braguinha embala um duo, que baila em harmonia, deixando de fora qualquer amargura que lhe afogue a alma.
É o amor!

Quita Miguel

Desafio nº 78 – escrever sem C P S T

sábado, 15 de novembro de 2014


Tropeção

 
Acabou de atender a última cliente, uma mulher bonita, com um sorriso bem-disposto. «É uma boa forma de terminar o dia», pensou ao trancar a porta. Em seguida, colocou a mão na base da grade de metal e preparava-se para a puxar em direção ao solo, quando sentiu o cano frio de uma arma na nuca. A esta, seguiu-se uma pressão nas costas. Uma mão que o empurrava contra o vidro, enquanto um bafo quente lhe ordenava ao ouvido: “Abra já a porta!”

– O que disse? – perguntou Valter, fazendo um movimento para se tentar libertar, mas logo desistindo ao ouvir a ameaça:

– Ena! Quer armar-se em herói. Se fosse a si pensava melhor, com certeza, não lhe pagam para levar uma bala nos cornos.

A ideia de permitir que aquele pulha se apoderasse do que estava à sua guarda enojou-o. Contudo, o ladrão não deixava de ter razão, refletiu. A farmácia não era sua, não havia o que defender, que levasse o que quisesse. Depois veria como explicar ao patrão. Num impulso, girou um pouco a cabeça, mas logo uma coronhada o obrigou a olhar em frente.

– Vamos lá ver, então, se nos entendemos. – A voz soou com uma tal frieza que o corpo de Valter gelou.

Pelo canto do olho, viu a manga amarrotada de um casaco velho. Como demorasse a obedecer, o homem voltou a empurrá-lo contra o vidro, sempre com a mesma brutalidade. Então, decidiu deixar para depois as perguntas que lhe fervilhavam na cabeça e agir com prudência. De modo atrapalhado, procurou a chave no bolso das calças, baixou-se até que a mão chegasse perto do chão, inseriu a chave na fechadura, rodou-a e a porta abriu-se.

Uma mão agarrou-o pela gola do casaco, não permitindo que se afastasse, enquanto a outra continuava a segurar a arma que voltava a roçar-lhe a nuca. Pensou na mulher e nos filhos, que o aguardavam em casa, e temeu pela vida. Entristeceu ao reconhecer que, no fundo, não precisavam dele. Não passava de um padrão de fracasso, que, há já algum tempo, deixara de se respeitar a si mesmo. No entanto, tudo o que tivesse feito ou deixado de fazer durante a vida perdia importância perante aquela ameaça.

Sentiu que o assaltante olhava em volta, procurando algo. Seria uma pessoa conhecida que ali fosse com frequência, ou alguém que entrava pela primeira vez, aproveitando a ocasião em que a rua se encontrava deserta? Não reconhecia aquela voz.

A medo olhou o relógio. Já perdera o comboio e isso, que tantas vezes o irritara, pareceu-lhe irrelevante. De repente, um frio intenso envolveu-o, como quando algo de ruim está próximo e, de novo, foi empurrado, desta vez, em direção da porta que conduzia à outra sala. A escuridão caiu sobre si como uma onda enorme e impiedosa. Tateou em busca do interruptor, mas antes que pudesse acender a luz, uma voz gritou-lhe ao ouvido.

– O frigorífico?

Valter apontou para o canto do lado direito.

– A morfina. Toda! – exigiu o homem, fazendo-lhe sinal para que se apressasse.

Demorou algum tempo, até conseguir acalmar-se o suficiente para avançar e abrir o pequeno frigorífico. Pegou num saco com uma mão e com a outra, que não podia evitar que tremesse, retirou, com fervor, os pequenos frascos. Entregou-os ao ladrão, esperando que isso pusesse fim àquele episódio.

– Fique aqui até eu estar bem longe ou mesmo até amanhã – retorquiu o gatuno, soltando uma gargalhada.

Sem conseguir emitir qualquer som, Valter fez sinal com a cabeça de que entendera. Estava paralisado, não conseguiria dar sequer um passo. Não eram só as mãos que lhe tremiam, mas também as pernas, os braços. Todo ele tremia sem conseguir parar.

Deixou-se ficar imóvel no escuro, tentando convencer-se de que estava a salvo.

De repente, ouviu um estrondo. Assarapantado, tropeçando nas próprias pernas, Valter foi até à outra sala e olhou para a rua. Estatelado, à saída da porta, estava o assaltante que segurava ainda o saco com a morfina. Ao seu lado, resmungando, um cego que procurava a bengala, apalpando o chão.
 
Quita Miguel

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

NÃO FOSTE DORMIR?

Nada mais fácil do que ser jovem, aceitar os desafios com que a vida os brinda e prolongar os dias, noite adentro.
A música embala-lhes a alma, a conversa anima-lhes as horas, que correm velozes. Quando se dão conta, o dia decidiu ganhar a dianteira e arriscar nascer.

– Porque não te deitaste, não foste dormir? – pergunta Dália Maria com ingenuidade, enquanto a mãe, sorrindo-lhe pelo o alívio de a ter diante de si, pensa: «Nada mais difícil.»

Quita Miguel

Desafio de 77 palavras entre tabelas: começando em "Nada mais fácil" e terminando em "Nada mais difícil".

quinta-feira, 6 de novembro de 2014


DEIXANDO-SE IR
 
 
Virgínia e Wilson partiram em direções diferentes, deixando-me a indecisão de quem seguir. Não pretendia enfrentar a vida sozinha, mas também não queria ter de escolher entre um deles. Afinal, até ontem éramos inseparáveis.

Lembrei-me das vezes que abdicara dos meus sonhos para que a nossa união permanecesse indestrutível, e agora, ambos me viravam as costas e se viravam as costas. Éramos um triângulo desfeito e só havia duas formas de o consertar. Ou encontrávamos um caminho comum, ou dois teriam de abraçar o caminho do outro.
 
Segui para casa, sentindo-me uma criatura espezinhada. A cada passo, a cabeça gritava-me para seguir em frente, enquanto no coração se instalava o pânico e construía um imenso pesar. Uma legião de pensamentos revoltosos começou a ganhar uma torturante dimensão.
 
Antes de entrar em casa, cobri-me com um manto de indiferença para ocultar a dor. Não iria dar à minha mãe o gosto de me atirar à cara: «Estás a ver como eu tinha razão. Tenho sempre. Fartei-me de te avisar que não devias ser dependente de amizades. Ninguém é confiável. Quando menos esperas, viram-te as costas. Agora, talvez me dês razão.»
 
Não, não lhe ia dar esse gosto. No entanto, no íntimo, não posso deixar de reconhecer que ela não está de todo errada, só não gosto que se vanglorie, fazendo-me sentir cravejada de espinhos. Sei que me deixei emaranhar numa teia tecida de linha podre, da qual não sei como sair.
 
Sou uma criatura simples que se comove com facilidade, uma sonhadora que se perde nas nuvens, um ser que se abraça às árvores. Como posso pensar seguir arquitetura ou design industrial? Eu converso com a natureza, construo sonhos coloridos, mas Virgínia ou Wilson não precisam de sonhar para se sentirem vivos.
 
– Não… não. Desta vez, não vou ceder – afirmo diante do espelho, numa tentativa de me autoconvencer, apesar da cratera que se abre no meu peito.
 
Que motivo tenho eu para abdicar de mim, pergunto-me ao longo do dia, enquanto tento colar os cacos em que o meu coração se transformou. Uma ligeira batida na porta do quarto apanha-me desprevenida e quando a porta de abre, ainda limpo as lágrimas.
 
– Então, já disseste à tua mãe que vamos para arquitetura? – pergunta Virgínia, que sem cerimónias se atira para cima da cama.
 
Olho para o chão, porque não tenho coragem de a encarar e, numa tentativa de afogar as palavras que se recusam a sair, bebo diretamente do gargalo da garrafa de água que tenho sempre à cabeceira da cama. Depois penso: «Talvez arquitetura não seja tão mau assim. Posso criar jardins internos ou envolvendo os edifícios. A dificuldade pode estimular-me a imaginação e dar-me o ponto de partida para criar novas soluções. E depois, posso sempre dedicar-me ao meu jardim nos tempos livres. É! Talvez arquitetura não seja uma má ideia.»
 
Por volta das oito e meia saímos, às nove estamos diante da casa de Wilson.
 
– Gosto muito de vos ver – diz ele, convidando-nos a entrar.
 
Enquanto eles falam, eu distraio-me com os meus pensamentos, imaginando-me daí a alguns anos, depois de ter concluído o curso na Universidade, com louvor, claro, porque quando me meto numa coisa é para ser uma das melhores.
 
– Achas que temos uma vida privilegiada? – Oiço Virgínia perguntar, com o ar provocatório que gosta de usar, e estico o ouvido na direção deles.
 
– Privilegiada, não! Se temos várias hipóteses de escolha é porque somos bons. – Wilson sempre se achou com direito a tudo e nunca se deixa perturbar pelas tentativas de Virgínia para o arreliar.
 
Os argumentos prosseguem por mais algum tempo, e percebo que ela está quase a convencê-lo a mudar de ideias, e que arquitetura é, cada vez mais, uma realidade possível.
 
Releio o meu coração e sinto-me enojada com a minha fraqueza. De repente, tudo fica turvo.
 
Reabro os olhos a tempo de ver o médico a sair. A enfermeira, com um sorriso no rosto, dá-me a boa notícia de que fora apenas uma queda de tensão. Se ela soubesse a tensão em que a minha vida se transformou, compreenderia o quanto está errada.
 
Os meus pais arrastam-me até casa enquanto, a cada trinta segundos, me pergunto: «Porquê? Porque é que não consigo ser eu mesma?»
 
– Já sei que escolheram arquitetura – oiço o meu pai dizer, olhando-me pelo retrovisor.
 
– O quê? – pergunto de forma automática.
 
– Não imaginas como fiquei orgulhoso com a tua escolha. Estou contente por o bom senso ter tomando conta da tua cabeça, esqueceres essa ideia absurda de paisagismo e seguires as minhas pegadas.
 
Engulo em seco e emudeço de novo. Como posso trair as expetativas do meu pai?
 
Encolho-me no banco e penso: «Quem sabe, quando festejar o meu décimo oitavo aniversário, ganho coragem para ser eu?!»
 
Quita Miguel