SONHO DE VIDA
Nadine
respirou fundo, sentindo-se plena. Nunca gostara de comédias. Os filmes que a
faziam chorar, esses sim, eram filmes de verdade. Vivia cada minuto como se
fosse um personagem, não um qualquer personagem, mas aquele que sofre, o que
ninguém respeita e que todos ridicularizam ou ignoram. Sentia-se bem com esse
sofrimento.
Deixou
o cinema e caminhou pela avenida sem destino. Não via sequer em que direção ia,
seguia apenas, deixando que um pé se colocasse na frente do outro. Quando deu
por si estava na beira do rio. Sentou-se e fantasiou um encontro, como os que
só acontecem nos filmes e, tal como esperara, ninguém apareceu.
No
caminho para casa, comprou uma revista, daquelas que mostram o mundo feliz das
pessoas que são alguém, que todos reconhecem e admiram. Gostava de as folhear, idealizando-se
em cenários tropicais ou estâncias de neve, lugares que a vida ameaçava nunca
lhe dar a conhecer. Mesmo assim, sonhava e isso deixava feliz.
Quando
colocou a chave à porta, a magia desfez-se com um: «Estava a ver que nunca mais
chegavas. Vê lá se vais fazer o jantar, que o teu pai não tarda aí.»
Bem-vinda
à realidade. Foi para a cozinha e, com rapidez, passou de princesa a gata
borralheira. Quando, após o jantar, acabou de arrumar tudo, fechou-se no
quarto. Desejava estar sozinha de modo que ninguém pudesse interromper o seu
divagar. No entanto, o sossego durou pouco, já que a irmã, nessa noite,
resolveu não sair. Espaçosa como era, apossou-se da revista e só a largou depois
de a ter lido de uma ponta à outra.
– Já
viste este concurso? Oferecem uma viagem a quem escrever uma história sobre a
sua vida. Tu, que tens a mania que sabes escrever, até podias concorrer. Não
que a tua vida tenha alguma coisa para contar, mas podes sempre mentir – disse
a irmã, atirando-lhe com a revista.
A
verdade doía, porém via-se forçada a concordar que a sua existência era um dia-a-dia
sem história e, ainda que mentisse, com certeza alguém escreveria algo melhor.
Para quê dar-se ao trabalho? Fechou a revista e deitou-se. Nessa noite, não foi
capaz de sonhar. Era como se a imaginação estivesse bloqueada na realidade e a
mente nada mais visse do que um apartamento nos subúrbios; a mãe, dobrada no
sofá da sala, a terminar mais um vestido para uma das poucas freguesas que ainda
restavam; o pai a ler a Bola ou esparramado no sofá em frente à televisão a ver
futebol; a irmã achando-se superior a todos porque trabalhava numa boutique.
Nadine,
terminado o liceu, apenas conseguira emprego como caixa num supermercado. Para
ajudar a transcorrer cada dia, socorria-se da imaginação. Ao receber os
pagamentos, deixava o pensamento voar até um dia no futuro, em que um charmoso
e rico rapaz se tomaria de encantos por ela e a levaria dali, para viver numa
bela casa virada para o mar, plena de criados para a servirem. Pena que esse
rapaz tardasse em aparecer. A maior parte das pessoas que atendia, nem a olhavam.
Seguiam no pequeno ecrã o registo de cada produto, colocavam o cartão de
crédito na ranhura do terminal e aceitavam o recibo, sem nunca lhe fixar o
olhar. Se lhes perguntasse de que cor era o seu cabelo, se era curto ou
comprido, ou mesmo se usava óculos, ninguém saberia dizer.
– Mamã,
mamã. É a Ofélia da novela.
– Não,
amor. É só uma empregada de supermercado.
Aquele
«É só» mexeu com ela. Como «É só»? Ela não «era só», ela «era uma». Nesse dia,
saiu do supermercado decidida a fazer ver àquela gente que não se limitava a
«ser só».
Toda
a noite, apesar das insistentes reclamações da irmã, não apagou a luz. Ficou a escrever
até os primeiros raios de sol lhe baterem na cara. Afinal, o prazo do concurso estava
prestes a esgotar-se e Nadine estava decidida a vencê-lo. Sempre queria ver se,
depois disso, mais alguém iria dizer que ela «era só» uma empregada de
supermercado.
Tão
forte determinação espantou-a a si mesma. Nunca antes lutara por nada, sempre
dera tudo por perdido logo à partida e agora, estava ali, agarrada a uma luta
que era bem mais do que isso. Era uma vingança por toda a invisibilidade que
sempre sentira.
No
dia 20 de Agosto, levantou-se bem cedo e correu para a banca dos jornais. A
revista já chegara, mas ainda estava no pacote à espera que o Senhor Paulo
tivesse tempo para cortar o atilho, conferir o conteúdo e colocá-la à venda.
–
Vá lá, Senhor Paulo. Abra primeiro aquele pacote. Por favor!
–
Ó rapariga, mas o que é que te deu para todo esse desassossego? Vá, vamos lá
ver o que é que isto tem.
O
coração de Nadine batia acelerado, quando folheou a revista. Paralisou. Permaneceu
estática, sem conseguir pensar e sem saber o que fazer.
– Então
rapariga. Tanta pressa e agora não dizes nada.
–
Senhor Paulo, Senhor Paulo.
– Sim
rapariga, desembucha, quem é que se divorciou, desta vez?
– Senhor
Paulo, eu ganhei! – gritou, agarrando-se ao pescoço do jornaleiro. – Eu ganhei!
Eu ganhei! Eu ganhei!
O
homem sorriu, sem saber do que ela estava a falar. Contudo, em breve, todos tomariam
conhecimento.
A
viagem que recebeu como prémio foi melhor do que qualquer dos seus sonhos,
porque teve um gosto de realidade. O príncipe encantado não apareceu até hoje, mas
Nadine foi capa da revista no mês seguinte, e isso ninguém lhe poderá tirar.
Quita Miguel
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