terça-feira, 25 de fevereiro de 2014


A COLCHA DE CETIM

 
– Fevereiro! Ó Fevereiro! Mas onde raio se enfiou o bicho? E o Belmiro que não chega. As aulas já acabaram há mais de uma hora, o que é que aquele rapaz anda a fazer? – reclamou em voz alta, ao mesmo tempo que pegou nos sacos, na mala, nas chaves de casa e do carro e, apressada, se dirigiu para a porta.

Não podia atrasar-se mais. Só esperava que Fevereiro não fizesse nenhuma asneira enquanto estivesse fora.

Quando a porta da rua bateu, Fevereiro abriu um olho, depois o outro, espreguiçou-se e com tranquilidade iniciou a higiene pessoal sob o raio de sol, que entrava pela janela da casa de banho e inundava a banheira.

Deram-lhe aquele nome porque nascera numa 3ª feira de Carnaval, que para azar seu, naquele ano, fora no mês mais curto do calendário. Que gente sem imaginação. Poderiam tê-lo batizado como serpentina, mascarilha ou bisnaga, mas não. Escolheram um nome sem graça. Belmiro chamava-lhe Feve e, a isso, ele até achava alguma piada. Deu uma última lambidela na pata direita e levantou-se.

«Como é bom estar sozinho em casa, poder explorar à vontade. Por onde começo? Hum…, onde é que nunca me deixam ir? Claro! O quarto, aquela cama grande, gostosa.»

Formou o pulo e deixou-se aterrar com suavidade na colcha de cetim. Mas que raio, aquela coisa mexia-se, escorregava por todo o lado, parecia que estava viva. Seria que mordia?

«Miau, miau, miauauauauauauuuuu…….»

Por mais que travasse, não conseguia parar. Agarrou-se com todas as unhas que tinha, mas saiu disparado contra a parede, arrastando a traiçoeira colcha que se abateu sobre si. Sentia-se sufocar e quanto mais tentava libertar-se, mais aquele tecido traidor o apertava. Em desespero usou tudo o que possuía, dentes, unhas e, ao fim de uma enorme luta, conseguiu que a cabeça surgisse do monte de trapos.

O resultado não era famoso. Nessa noite, o gato ia miar, ai se ia.

O mal estava feito, fazer o quê? Pé ante pé, como se houvesse alguém que o pudesse ouvir, subiu até ao sótão. Ali só havia coisas velhas, mas podia aproveitar para descansar um pouco. A luta fora dura. Saltou para o sofá e uma enorme nuvem de pó invadiu-o, irritando-lhe as narinas.

«Atchim, atchim, atchim, atchim.»

Que inferno, não havia como parar. Aquele, definitivamente, não era o seu dia. Quando conseguiu deixar de espirrar, olhou-se com desdém. Nem parecia o gato asseado que era. Teria de recomeçar a lamber cada pelo, mas deixaria a tarefa para mais tarde, agora sentia-se de tal modo cansado que até lhe faltava o ar.

Vencido, deitou-se no sofá bolorento. Estava quase a adormecer quando qualquer coisa mexeu no cimo do cabide velho. Que seria aquilo? Um rato? Seria um rato? Como se atrevia? Que roedor desavergonhado invadia assim os domínios de Fevereiro? Não podia tolerar tal audácia. Bem devagar, foi-se agachando e preparou-se para voar em direção ao cabide.

O rato, vendo-o no ar, acelerou rumo ao chão e sumiu num pequeno buraco. Fevereiro viu-se, de repente, agarrado a um cabide rodopiando, caindo descontrolado para cima da cadeira de baloiço, que com o balanço o atirou contra a velha máquina de escrever que de repente falava sozinha:

«Brrrrrrrrrrrrrr, plim.»

Desta vez, extrapolara. Era hoje que o iam pôr a dormir no celeiro. Assustado, saiu a correr escada abaixo. A velocidade era tal que só parou contra as pernas do dono, que acabava de chegar.

Belmiro procurou disfarçar o vendaval que assolara a casa, mas não havia como repor a colcha da cama. Dentro de uma hora a mãe estaria de volta e aí o bicho ia pegar.

No chão do quarto espalhou o dinheiro que estava a juntar para comprar o novo skate e contou-o. A decisão não era fácil, mas tratava-se de salvar um amigo.

Quando a mãe meteu a chave à porta, Belmiro e Fevereiro estavam sentados no sofá da sala, muito direitos, sem dizer uma palavra.

– Isto não configura nada de bom – comentou a mãe, olhando-os bem nos olhos.

– É que… bem… quer dizer…

– Deixa ver se adivinho. Tu foste andar de skate, esqueceste-te das horas, o Fevereiro ficou sozinho em casa e… Qual é o desastre desta vez?

Belmiro engoliu em seco, incapaz de pronunciar qualquer palavra. Em silêncio, estendeu-lhe um embrulho com um enorme laço e um cartão que dizia: «Errámos, mas somos apenas miúdos. Perdoa-nos.», assinado com uma pata de gato e uma mão de menino.

A abertura da caixa revelou uma colcha um tanto chinfrim, bem diferente da bela colcha de cetim, mas ali estavam todas as economias do filho.

– É a colcha mais bonita que alguma vez recebi – disse, abraçando-o. – Vá lá, vem cá tu também. – Fevereiro saltou para o seu colo e brindou-a com uma marradinha e várias lambidelas, daquelas reservadas aos amigos.

Quita Miguel

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ISOLAMENTO

Pintou as janelas, deu cera nos corrimões da escada e pendurou os reposteiros.
Com afinco dedicou-se ao trabalho exterior, aquele que a preenchia. Cuidou do jardim. Plantou flores, varreu folhas velhas e oleou a cancela.

Quando...
terminou, a noite era sua companheira, limpa e demasiado fria. Agasalhou-se, olhando a placa que daria a conhecer quem ali se isolava.
Tomou a única decisão possível. O apelido ficou preso no arame farpado, indicando que aquele espaço era só seu.

Quita Miguel




 Histórias em 77 palavras:
http://77palavras.blogspot.pt/
 
Desafio nº 60 – apelido preso no arame farpado (frase obrigatória)

sábado, 15 de fevereiro de 2014


NÃO INCOMODAR

 

Quero dizer que cansei. Cansei de fechar os olhos, olhar para o lado, fazer que não vejo. Que não vejo que esta vida se torna cada vez menos vida e mais rotina. Rotina de hábitos, de frases feitas, de sorrisos estudados, de sins que valem nãos.

A lista do ressentimento e da calúnia é longa, porque há sempre quem não consiga deixar o velho vício de escarnecer e mal dizer. Nada há para se discutir ou explicar, a única preocupação é dizer mal.

Muito mais existe do que aquilo que é mostrado, porque em tudo o que de legítimo fazermos, nos ocultamos. Não temos coragem de assumir que não gostamos, que enchemos o saco, que não estamos nem aí para as convicções de tantos. Mas como? Isso seria ir contra o estabelecido. Então, o que irão pensar de nós?

Assustamo-nos continuamente. Aqui e ali interrompemos a dança harmoniosa da vida com medo do desemprego, da violência, das contas a pagar, das crianças a educar e, quando damos por isso, perdemos simplesmente a capacidade de dançar.

Buscamos significados mais profundos para a nossa vida, porque nos sentimos responsáveis: por nós, pelo outro, pelo mundo, pela vida. Mas chegamos sempre tarde demais e acabamos ficando enredados na superficialidade. Bem cedo, percebemos que ninguém diz o que pensa e juntamo-nos a esse grupo por comodidade, por receio, por insegurança. É difícil que algum dia estejamos preparados para a verdade, aquela que pesa, aquela que vemos quando nos olhamos ao espelho e não gostamos da imagem refletida, aquela que nos tortura quando fechamos os olhos e não conseguimos dormir. Mentira, ignorância ou falsa noção de utopia?

Então, construímos à nossa volta uma capa cada vez mais forte, um muro cada vez mais alto, que nos protege mas em simultâneo nos isola.

Atacamos antes que nos ataquem, como se o outro fosse uma permanente ameaça ao nosso lugar no mundo, que nem sabemos bem qual é. Pode ser um bom critério, mas sinto muito dizer que isso não faz parte da vida, nem é natural.

Acordamos a cada dia com raiva de tudo e de todos e começamos a discutir no trânsito, para continuarmos no emprego e terminarmos em casa. E assim se vãos os bons momentos, os momentos fraternos.

Sem grandes conversas nem palavras explicativas, vamos esquecendo o significado de solidariedade, simplicidade, honestidade e carinho. Sentimentos sem os quais, por certo, nem estaria aqui.

Mas há que ter esperança de que esses valores renasçam e não se deixem esmagar sobre o poder de traficantes, que devem achar lindo matar com lentidão os viciados, ou de políticos que no auge da sua corrupção permitem que a má informação, a ignorância e a lavagem cerebral alimentem em parte toda esta insanidade.

Nunca fui muito nacionalista, nem me interessei pela bela representação nacional. Aliás nunca me interessei por nada, pela simples razão de ser nacional. “O que é nacional é bom!”, frase de publicitário, outra área onde a falsidade impera.

Quando deixaremos de ser publicitários e teremos a coragem de encarar o mundo sem óculos cor-de-rosa, sem véus de neblina, sem falsas ilusões? Quando assumiremos no íntimo que cor de pele, condição social, instrução são apenas atributos exteriores e, olhando bem para dentro de nós, conseguiremos descobrir os valores que ocultamos sob a capa social?

Quando é que em vez de dar uma esmola para descansar a consciência, procuraremos contribuir de um modo mais definitivo para dar dignidade ao mundo? Em vez de lhes dar o peixe, porque não os ensinamos a pescar? Frase feita? Infelizmente, sim!

Se tivermos a coragem de gritar «Não!» dormiremos pior? É bem possível, mas por algum lado teremos de começar a limar as pontas, e que pontas ásperas temos para limar.

Ou acreditamos em definitivo que este mundo ainda tem jeito e que temos capacidade de o mudar, ou mais vale mandar tatuar bem no meio da testa: NÃO INCOMODAR.

Quita Miguel

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Nervos de aço


– É mesmo insuportável. Tens a certeza que ele tem de ir connosco?

– Não faças essa cara amuada. É fácil lidar com ele, basta sorrir-lhe quando te fala com duas pedras na mão, ir falando cada vez mais baixo e com mais calma à medida que ele se enerva e grita. A cada ofensa, responder com um elogio. Quando ele perceber que não tem público, o espetáculo acaba.

– Só tens de juntar à receita os nervos de aço.

Quita Miguel
 
Desafio: Uma receita para melhorar alguém em 77 palavras

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014


Ervilhas com natas

Assim que a cebola picada e as 100 g de presunto começam a refogar nas duas colheres de margarina, a cozinha perfuma-se. Junte ½ kg de ervilhas e tempere com pimenta moída, noz-moscada, tomilho e tudo o mais que a sua imaginação ditar, porque no escrever e no cozinhar o prazer está no criar.
Quando apurar, junte 1,5 dl de natas e, caso a galinha tenha colaborado, pode escalfar um ovo.

Depois é saborear, só ou acompanhado.
Quita Miguel

Desafio: Uma receita em 77 palavras

domingo, 9 de fevereiro de 2014


FECHADO PARA DESCANSO DO PESSOAL

 
Gonçalo estacionou na beira da falésia, saiu do carro e inspirou profundamente, como se quisesse absorver todo o ar que o envolvia. Depois deixou o olhar passear em redor, vendo cada detalhe daquela paisagem deslumbrante. O verde e o castanho, ora escuro, ora luminoso, entrelaçavam-se como que num movimento de dança eternizado por algum bastão mágico, que paralisara plantas e árvores. Nada se movia, nem a mais leve brisa, nem a mais pequena ave. Até o céu se apresentava anormalmente azul para aquela estação do ano, sem uma única nuvem que lhe desse movimento. Era como se o mundo tivesse parado, e ele se defrontasse com uma fotografia.

Tudo aquilo lhe transmitia um sentimento estranho, confuso, agitado, que não conseguia definir.

O som de uma motorizada, que se aproximava, trouxe-o à realidade. Olhou o relógio. Se não queria chegar atrasado ao jantar dessa noite, era melhor meter-se à estrada. Ia ficar noivo. Não pôde evitar um sorriso sarcástico. Como se tinha deixado enlaçar, de modo a não poder retroceder? Numa época em que se vivia sem grandes formalismos, como é que ele podia ficar noivo? Duvidava mesmo que os mais jovens soubessem o significado daquela palavra.

Aumentou o volume do rádio e deixou-se envolver pelo som dos blues. Passou uma mão pelos olhos. Sentia-se cansado, demasiado cansado para pensar com clareza. Olhou-se no retrovisor. Os olhos eram pequenos, profundos e firmes, sob escuras e enérgicas sobrancelhas.

Não podia negar que Beatriz era uma mulher fascinante, linda e culta, mas, existe sempre um mas, nunca se conseguira libertar do pai. O General comandava a família como se estivesse na mais dura das missões. Só se fala sobre temas que interessem ao General e é melhor não ter a veleidade de expressar uma opinião contrária, pois teremos discurso para mais de uma hora, só com o intuito de demonstrar que estamos errados.

Caminhava para aquele jantar como um condenado para a última refeição, durante a qual o seu futuro seria sentenciado e não haveria como voltar atrás. Bem, haver até havia, mas isso seria dizer adeus àquele descapotável, às roupas de marca, ao whisky de 15 anos. Seria o regresso à vida que levava antes de conhecer Beatriz, uma vida comum, apagada, insignificante.

Tentava convencer-se que fizera a escolha certa, na esperança de que tudo fosse diferente quando estivessem casados e pudessem passar sem o regime militar ou, pelo menos, circunscrevê-lo a um ou outro almoço por mês.

De repente, sentiu que o carro perdia velocidade, ao mesmo tempo que o motor silenciava como que adormecido. Devagar virou o volante de modo a colocá-lo na orla da estrada e deixou que este se imobilizasse.

O céu estava a mudar de cor. Os primeiros raios púrpura do crepúsculo começavam a substituir o azul do fim de tarde. Para o ocidente, o pôr-do-sol dava um tom rosa às nuvens que começavam a surgir, trazidas por um vento que iniciava a soprar em pequenas rajadas.

Gonçalo girou a chave na ignição. Nada. Tentou de novo, mas o motor recusava-se a emitir o mais pequeno som que fosse. Tornou-se evidente que não iria chegar a tempo.

Pegou no telemóvel ao mesmo tempo que procurava com frenesim o número da assistência em estrada. Só eles o poderiam salvar da eminente catástrofe. O General nunca permitiria que a única filha casasse com um irresponsável, que deixava cinco dezenas de convidados à espera, porque decidira seguir por uma estrada secundária e não tivera o cuidado de o fazer com a antecedência suficiente, prevendo um eventual percalço. Gonçalo não estava propriamente em guerra, não sentia necessidade de ter em permanência um plano B, mas como explicar isso ao General.

Onde colocara o raio do cartão? Sabia que o guardara, mas onde? Procurou na carteira, no porta-luvas. Por fim encontrou-o. A luz escasseava. Tinha dificuldade em ver os algarismos.

Começou a marcar o número mas logo se deu conta de que não havia rede. Saiu do carro, caminhou um pouco para a direita, depois para a esquerda. Nada.

Começou a sentir um medo misturado com raiva. O medo de ver o futuro a jogar-se naquele momento e a raiva de se sentir impotente para o alterar.

Maldito jantar, maldito carro, maldito telefone. Olhou em volta. Não se via ninguém. O céu começava a ganhar uma tonalidade cinzento-escura. Desta vez, estava perdido. Não sabia mesmo se amanhã haveria tempo suficiente para explicações e conclusões. No cimo da elevação, lá bem ao fundo, viu uma construção que parecia ser um café. Talvez ainda houvesse esperança.

Subiu a encosta, a passo rápido. A casa apresentava um ar mal tratado, mas isso pouco importava desde que tivesse telefone.

A luz começava a escassear quando, arfando, chegou à porta. Ainda teve tempo de ler antes que a noite caísse por completo: Fechado para descanso do pessoal.
 

Quita Miguel

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014


GANHANDO O MUNDO

– Sai-me da frente dos pés, que raio! Vá, vai lá para fora.

Mal a porta se abriu correu pelo jardim, rebolou-se no relvado, correu atrás dos pássaros. Estava feliz porque reconhecera a movimentação de passeio. Adorava quando saiam todos juntos.

Só que naquele dia, para espanto de Damião, após carregarem as malas e entrarem no carro, não o chamaram. Limitaram-se a partir, deixando-o para trás.

Do automóvel que ganhava velocidade, partiu um último olhar, que de imediato se desviou.

Ele correu, implorando que parassem, que não se esquecessem dele, que o levassem também, mas o carro ia ficando cada vez mais longe. No final da rua parou no semáforo. Damião acelerou a corrida. Ia conseguir, ia conseguir, ia conseguir… quando estava apenas a alguns metros o sinal mudou para verde e ele, apesar da corrida desenfreada, permanecia cada vez mais para trás. Quando os perdeu de vista, deixou-se ficar estático no meio do cruzamento sem saber por onde seguir.

– Hei cão maluco. Parece que queres morrer. – Alguém gritou.

Durante alguns minutos andou para trás e para diante, depois regressou a casa e dirigiu-se à janela para se assegurar de que não estava ninguém lá dentro. Tudo permanecia fechado e silencioso.

Não sabe por quanto tempo continuou na mesma posição expectante, os olhos fixos no horizonte como se esperasse por um qualquer sinal. Só que esse sinal não vinha. Sentia-se entre a rendição e a perseverança, entre a certeza de que fora propositadamente deixado para trás e a esperança de que tivesse sido apenas esquecido.

Sentado à luz da lua deixou-se invadir pelo medo, o medo de ficar sozinho, o medo de ninguém o querer, o medo de estar, de forma irremediável, perdido no mundo.

Algures, começou um grilo a cantar. Ao longe, respondeu-lhe outro.

A menina da casa vizinha começou a acariciá-lo. Com ternura, sentada nos degraus da entrada, afundava-lhe os dedos no pelo. «Assim está melhor», pensou, mas logo alguém a chamou, e Damião ficou de novo só.

Não tem ideia de quantos dias passaram, até que o automóvel chegou à porta de casa e os donos desceram. Damião saltou em torno deles, mostrando a sua alegria pelo tão esperado regresso. O dono falava ao telemóvel sem lhe dar atenção, mas o cão não desistia, rodando á sua volta. Contudo, aquilo não pareceu agradar, pois o dono revirou os olhos e gritou-lhe para estar sossegado e parar. Confuso, Damião insistia. Então, o homem começou a ficar furioso, gritou ainda mais alto e voltou para o telefone.

A dona, com uma mão nos cabelos agitados pelo vento, metia com pressa a chave na fechadura. Quando a porta se fechou atrás deles, uma paz miraculosa invadiu-o. A casa acolheu-o. Pousaram a bagagem e sentaram-se como que dizendo: «eis-nos aqui», mas sem proferirem palavra. Damião deitou-se, o focinho entre as patas, olhando ora para um, ora para outro, esperando a tão aguardada festa. Mas a festa não veio.

A dona abriu os braços resignada.

– Vou dar-te um pouco de leite – disse.

Bebeu-o com sofreguidão. Há muito que vivia dos restos que conseguia apanhar nos caixotes ou no prato de algum cão desatento. Não foi dita mais nenhuma palavra. Ambos sabiam o que acontecera.

Então o que fazer? Não só naquele dia, mas nos que se seguiriam.

Recordou-se de quando saiam para trabalhar e ele ficava em casa, sozinho. Gostava de vasculhar tudo. Por vezes chateado, saltava para as costas do sofá e ficava a observar o movimento da rua.

Nunca antes o tinham deixado só, mais do que algumas horas, e nunca fora de casa. Por alguma razão tudo mudara. Pouco a pouco, descobria a realidade do lugar onde vivia. Já não pertencia ali, já não era bem-vindo.

Foi até à porta da rua e ladrou, pedindo que lha abrissem. Quando o fizeram, saiu sem hesitação.

Andou até ao passeio, virou-se e deitou-lhes um último olhar. Desistia, naquele momento, do seu papel de animal de estimação. Era provável que nem dessem pela sua falta.

Um grupo de cães vadios atravessava a estrada. Correu e juntou-se-lhes. Podia ser que pelos da sua espécie, fosse melhor acolhido.

Quita Miguel