A COLCHA DE CETIM
– Fevereiro!
Ó Fevereiro! Mas onde raio se enfiou o bicho? E o Belmiro que não chega. As
aulas já acabaram há mais de uma hora, o que é que aquele rapaz anda a fazer? –
reclamou em voz alta, ao mesmo tempo que pegou nos sacos, na mala, nas chaves
de casa e do carro e, apressada, se dirigiu para a porta.
Não
podia atrasar-se mais. Só esperava que Fevereiro não fizesse nenhuma asneira
enquanto estivesse fora.
Quando
a porta da rua bateu, Fevereiro abriu um olho, depois o outro, espreguiçou-se e
com tranquilidade iniciou a higiene pessoal sob o raio de sol, que entrava pela
janela da casa de banho e inundava a banheira.
Deram-lhe
aquele nome porque nascera numa 3ª feira de Carnaval, que para azar seu,
naquele ano, fora no mês mais curto do calendário. Que gente sem imaginação.
Poderiam tê-lo batizado como serpentina, mascarilha ou bisnaga, mas não. Escolheram
um nome sem graça. Belmiro chamava-lhe Feve e, a isso, ele até achava alguma piada.
Deu uma última lambidela na pata direita e levantou-se.
«Como
é bom estar sozinho em casa, poder explorar à vontade. Por onde começo? Hum…,
onde é que nunca me deixam ir? Claro! O quarto, aquela cama grande, gostosa.»
Formou
o pulo e deixou-se aterrar com suavidade na colcha de cetim. Mas que raio,
aquela coisa mexia-se, escorregava por todo o lado, parecia que estava viva.
Seria que mordia?
«Miau,
miau, miauauauauauauuuuu…….»
Por
mais que travasse, não conseguia parar. Agarrou-se com todas as unhas que
tinha, mas saiu disparado contra a parede, arrastando a traiçoeira colcha que se
abateu sobre si. Sentia-se sufocar e quanto mais tentava libertar-se, mais
aquele tecido traidor o apertava. Em desespero usou tudo o que possuía, dentes,
unhas e, ao fim de uma enorme luta, conseguiu que a cabeça surgisse do monte de
trapos.
O
resultado não era famoso. Nessa noite, o gato ia miar, ai se ia.
O
mal estava feito, fazer o quê? Pé ante pé, como se houvesse alguém que o
pudesse ouvir, subiu até ao sótão. Ali só havia coisas velhas, mas podia aproveitar
para descansar um pouco. A luta fora dura. Saltou para o sofá e uma enorme
nuvem de pó invadiu-o, irritando-lhe as narinas.
«Atchim,
atchim, atchim, atchim.»
Que
inferno, não havia como parar. Aquele, definitivamente, não era o seu dia.
Quando conseguiu deixar de espirrar, olhou-se com desdém. Nem parecia o gato
asseado que era. Teria de recomeçar a lamber cada pelo, mas deixaria a tarefa para
mais tarde, agora sentia-se de tal modo cansado que até lhe faltava o ar.
Vencido,
deitou-se no sofá bolorento. Estava quase a adormecer quando qualquer coisa
mexeu no cimo do cabide velho. Que seria aquilo? Um rato? Seria um rato? Como
se atrevia? Que roedor desavergonhado invadia assim os domínios de Fevereiro?
Não podia tolerar tal audácia. Bem devagar, foi-se agachando e preparou-se para
voar em direção ao cabide.
O
rato, vendo-o no ar, acelerou rumo ao chão e sumiu num pequeno buraco.
Fevereiro viu-se, de repente, agarrado a um cabide rodopiando, caindo descontrolado
para cima da cadeira de baloiço, que com o balanço o atirou contra a velha
máquina de escrever que de repente falava sozinha:
«Brrrrrrrrrrrrrr,
plim.»
Desta
vez, extrapolara. Era hoje que o iam pôr a dormir no celeiro. Assustado, saiu a
correr escada abaixo. A velocidade era tal que só parou contra as pernas do dono,
que acabava de chegar.
Belmiro
procurou disfarçar o vendaval que assolara a casa, mas não havia como repor a
colcha da cama. Dentro de uma hora a mãe estaria de volta e aí o bicho ia pegar.
No
chão do quarto espalhou o dinheiro que estava a juntar para comprar o novo skate e contou-o. A decisão não era
fácil, mas tratava-se de salvar um amigo.
Quando
a mãe meteu a chave à porta, Belmiro e Fevereiro estavam sentados no sofá da
sala, muito direitos, sem dizer uma palavra.
–
Isto não configura nada de bom – comentou a mãe, olhando-os bem nos olhos.
–
É que… bem… quer dizer…
–
Deixa ver se adivinho. Tu foste andar de skate,
esqueceste-te das horas, o Fevereiro ficou sozinho em casa e… Qual é o desastre
desta vez?
Belmiro
engoliu em seco, incapaz de pronunciar qualquer palavra. Em silêncio, estendeu-lhe
um embrulho com um enorme laço e um cartão que dizia: «Errámos, mas somos apenas
miúdos. Perdoa-nos.», assinado com uma pata de gato e uma mão de menino.
A
abertura da caixa revelou uma colcha um tanto chinfrim, bem diferente da bela
colcha de cetim, mas ali estavam todas as economias do filho.
–
É a colcha mais bonita que alguma vez recebi – disse, abraçando-o. – Vá lá, vem
cá tu também. – Fevereiro saltou para o seu colo e brindou-a com uma marradinha
e várias lambidelas, daquelas reservadas aos amigos.
Quita
Miguel
Sem comentários:
Enviar um comentário