domingo, 22 de outubro de 2017

Gato Capado

cara de Flávio Fernando ficou como se tivesse sido moldada em cera, ao ler a carta: a irmã, achando-se certa, ia capar o gato.
– Como é que ela corta o que não é dela? – reclamou, procurando uma corda para fazer não sabia de quê.
Da copa de uma árvore veio um miado. Afinal, o gato estava inteiro. Só a irmã para brincar com algo tão sério.
Flávio entrou em casa, encheu um copo, descontraindo o corpo.

Quita Miguel 

Escritiva nº 25 - palavras em sequência de mudança

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Estressado


estrada encheu-se com uma estridente travagem.
– Cada vez há mais desastrados que destroem a paz – disse o maestro estressado, enquanto o gato estrábico o olhava.
estreia da nova peça estava próxima. Seria uma apresentação restrita, porém o nervosismo fazia-o querer estripar quem fizesse barulho enquanto ensaiava.
Sentado ao piano repetiu, vezes sem conta, a entrada da peça, até que as estrelas cobriram o céu e um estrondo o fez parar. Era o gato, querendo jantar.

Quita Miguel

Desafio nº 127 – stra, stre, stri e stro x 3

terça-feira, 10 de outubro de 2017

VIDA



Percorreu o declive até ao mar, naquele final de tarde, e sentou-se numa rocha, com as ondas a refrescar-lhe os pés. O silêncio doía-lhe, porém, sabia-lhe bem. Assim, camuflava a gritaria a que fora sujeita, algumas horas atrás e que ainda a magoava.

Julgara que encontrara o amor. Um amor completo, eterno, carinhoso, no entanto talvez se tenha equivocado. Saiu de casa e andou sem destino, enquanto pensava na razão da vida.

Algumas vezes já se perguntara: «Para quê viver?». Depois alguma coisa a distanciava deste pensamento e procurava ser feliz e, algumas vezes até o conseguia, mas desta vez nada lhe interrompia os pensamentos: a praia estava deserta.

Que vida estúpida havia levado durante os seus longos anos.

Gastara a infância, estudando inutilidades. Perdera a juventude num curso superior desinteressante, porque se deixara vencer pelo cansaço de ouvir: «Se queres ser alguma coisa na vida tens de estudar.»

Ela não queria ser ninguém na vida, só queria ser ela e ela odiava estudar.

Quando terminou o curso de direito, cujas cadeiras foram feitas à primeira, apenas porque não conseguiria ouvir tudo aquilo de novo, e após o estágio, o seu primeiro ato foi suspender a inscrição. Encontrara-se perante mais uma inutilidade, que fizera apenas por não ter coragem de ser ela mesma.

Depois vieram os empregos e daqueles que até gostava, passou para aquilo que odiava porque, mais uma vez, não seguiu a sua cabeça.


Agora, sentada diante daquela imensidão perguntava-se porque se anulara sempre. Seria por comodismo, falta de coragem ou medo? Ela apostava no medo e revivendo tudo percebia que ele vinha da infância, do receio da falta de dinheiro, que ainda hoje a mantinha num emprego que era como um vómito.

Então, para quê viver? Que coisa estúpida é esta por que temos de passar?

Naquele momento, um cão deitou-se ao seu lado. Procurou em volta, contudo a praia continuava deserta. Olhou-o e sentiu-lhe a tristeza no olhar, uma tristeza igual à dela. Acariciou-o e sentiu-lhe a gratidão quando lhe colocou o focinho nas pernas.

Naquele momento, decidiu que nunca mais se deixaria maltratar, ainda que apenas verbalmente. Da sua vida iria fazer o que entendesse, sem seguir o que o mundo pensava correto.

Pegou nas patas do cão e disse-lhe:

– Anda! Vamos permitir-nos viver.



FIM



Quita Miguel

domingo, 1 de outubro de 2017

Intermitente


– Eu sinto-o intermitente.
– Hã?
– Às vezes, concorda com o que lhe proponho, para, logo a seguir, se contradizer e negar ter concordado com o que quer que seja.
– Qual é a novidade? Ele sempre foi estranho.
– Não como agora. Pressinto que desta vez seja uma situação terrivelmente ameaçadora – respondeu Fátima Conceição, com uma convicção que a amiga estranhou, ao mesmo tempo, que olhando o pai na cadeira de baloiço, acrescentou: – Acho que ele pode estar com Alzheimer.

Quita Miguel

Desafio nº 126 – sentia-se intermitente