VIDA DE COSTAS VOLTADAS
– Por Deus! Não sei o que faça contigo.
Tudo pode mudar, só depende de ti. Não percebo porque te sacrificas dessa
maneira – desabafou Eva Jesus, fixando a irmã que calada soltava mais um botão
da camisa. Gostava de usar as golas abertas.
Laurentina queria retirar-se, para não
continuar a ouvir sempre a mesma conversa, no entanto, ficou ali imóvel, apenas
se olhando no espelho e recordando aquele instante que decidira a sua vida. Continuava
a revivê-lo com angústia. Observou a imagem refletida. Mantinha o luto sobre os
ombros, eco do pesar que lhe ia na alma.
– Ó, mamã! – ouviu gritar.
– Que queres meu querido? – Aproximou-se
com a espécie de emoção que só uma mãe experimenta.
Sentia-se consternada cada vez que não
conseguia satisfazer-lhe uma curiosidade. «Porque partiu o papá?»,
perguntara-lhe ele uma vez, e ela emudecera, continuando em busca da resposta.
Diziam-lhe que o reino de Deus era justo,
ela duvidava. Por algum tempo, agarrara-se à bíblia, lera todos os versículos,
depois entrara numa crise de descrença e hoje impressiona-a quem acredita no
que quer que seja.
– Jacinto José!
Ele sorriu, sentado na cama, a chucha bem
agarrada entre os dentes.
– Mas, meu filho, tu precisas de dormir.
Sabes que a mamã necessita de descansar.
Quando regressou à sala, Eva preparava-se
para sair.
– Porque te vais embora tão depressa?
A irmã baixou a cabeça sem lhe responder,
depois deu-lhe um beijo e prometeu voltar logo que pudesse.
Laurentina ainda fez menção de repetir a
pergunta, mas acabou desistindo e, assim que a porta do elevador se abriu, encolheu
os ombros e recolheu-se em casa.
– Ah! O que é que o menino faz aqui
descalço?
Três meses se haviam passado sobre o momento
em que ficara só para cuidar do filho. Durante quatro dias havia permanecido
junto do marido, esperando o milagre que não viera. Hoje, sentia-se abandonada,
pela vida, pela sorte, por Deus. Laurentina sabia que a criança não podia
continuar a viver naquele ambiente de profunda tristeza em que a casa mergulhara.
Apesar disso, não conseguia afastar-se de um sentimento de desgosto, nem
conseguia amar menos o pai de Jacinto José do que naquele dia em que se
ajoelhara à sua frente e lhe pedira que casasse com ele. Muitas vezes, duvidava
de que o que sentia se pudesse modificar. De tal forma a ideia de o deixar de
amar era impensável que, só de imaginá-lo, se sentia agredida no seu íntimo.
E assim, neste arrastar-se, se passaram
mais quatro meses e era ínfima a diminuição da saudade. A irmã e as primas bem
tentavam arrastá-la para reuniões, que ela recusava com a delicadeza possível.
No entanto, tinham conseguido apresentar-lhe dois rapazes que se haviam mudado
para o bairro há pouco tempo. Queriam, porque queriam, arranjar-lhe um namorado,
como se sete meses fossem suficientes para esquecer alguém, em especial alguém
com quem se dividiu a vida, se partilhou alegria e tristeza, alguém com quem se
gerou um filho. Laurentina pensava em tudo isto, enquanto olhava o recibo da
renda, que não sabia durante quanto tempo iria conseguir pagar. Passava cada
vez mais tempo sozinha, porque lhe incomodava a felicidade dos outros, não por
uma questão de inveja, mas por a alegria reforçar a sua dor e junto dos outros se
sentir ainda mais só.
Sentou-se na extremidade da cama, que se
tornara grande demais, e resolveu que necessitava de mudar a sua vida, não
tanto por ela, mas por Jacinto José. Foi a partir dessa altura, que começou a
magicar numa ideia que guardou para si, deixando-a germinar sem pressas.
Quando faltava pouco mais de uma semana
para o quinto aniversário do filho, percebeu que não poderia continuar a adiar
a decisão que se impunha. Precisava reencontrar a paz que a vida havia apagado
e isso implicava, não só abandonar a casa, que se tornara demasiado cara, mas
mudar tudo.
Deixou o filho com a vizinha e caminhou,
permitindo que fossem as pernas a escolher o destino. Ao fim de uma hora,
estava diante da minúscula baía onde brincara em criança e onde conhecera e se apaixonara
pelo marido. A superfície da água estava serena, bem diferente do sentimento
que a envolvia.
Quando olhava aquela paisagem, chegava a
pensar que Deus existia, mas bastava-lhe recordar o último ano para ter a
certeza de que estava errada.
– Vem comigo – dizia-lhe ele em sonhos e
ela queria ir, mas não podia. Se Jacinto José não existisse… Logo em seguida,
recriminava-se por tal pensamento e tomava consciência de que a tristeza era o
grande óbice para que pudesse seguir em frente.
Ali mesmo, diante daquele lugar mágico,
jurou deitar mãos à vida e acordar do marasmo em que se enterrara.
Dormiu mal naquela noite, inquieta,
mortificada pela sua fraqueza, infeliz por se sentir infeliz, obcecada por um
círculo vicioso que a agarrava ao passado. Atormentada, levantou-se ainda de
madrugada, procurando dar sentido ao remorso que a começava a minar. Como se
deixar de ser infeliz constituísse uma traição.
Foi até ao quarto do filho e ficou a vê-lo
dormir.
– Como posso saber o que é certo ou errado?
– perguntou-se e acrescentou: – Hei! Se tu existes aí em cima, não me queres
dar uma resposta?
O silêncio fez-se ainda mais pesado.
– Logo vi que não podia contar contigo –
ironizou Laurentina.
– Agora o que vou fazer? – Laurentina
olhava a carta que informava que o contrato não seria renovado, que os seus
serviços não seriam mais necessários. No final do mês estaria na rua.
– Moça! – A voz do rapaz soou-lhe longe,
ao mesmo tempo que o mundo parecia escurecer. Quando despertou, quase saltou de
susto tal era o número de faces que se lhe sobrepunham.
– Afastem-se, deixem-na respirar – disse a
mesma voz de rapaz.
– Se calhar está grávida – comentou
alguém.
Ela sorriu, um sorriso triste. Como queria
que isso pudesse ser uma realidade.
– Venha, vamos sentá-la ali naquele banco.
– O rapaz ajudou-a a levantar-se e conduziu-a até à entrada do jardim.
Telefonou à irmã, que apareceu numa inquietação
pouco habitual, num silêncio que a assustou ainda mais. Onde estavam os
insistentes conselhos?
Sem pronunciar uma palavra, Eva Jesus leu
a carta que Laurentina lhe estendera e, em seguida, mostrou-lhe a sua. A bem-aventurança
andava longe daquela família. Percorreram a viela até casa de Laurentina, com a
revolta a queimar-lhes a garganta.
Na sala, o filho brincava, alheio ao olhar
molhado das mulheres, aos gritos sufocados, ao estado de desespero que lhes extorquia
a esperança. Que poderiam fazer? Roubar? Que carma terrível era aquele que precisavam
cumprir?
– Não faço ideia do que fazer – desabafou
Laurentina, pegando na moldura com a fotografia do marido, falando mais com ele
do que com a irmã, que parecia ainda mais abatida do que ela.
Jantaram em silêncio e, assim que
terminaram de arrumar a cozinha, Eva Jesus desapareceu.
Ficava cada uma com a sua solidão, o seu marasmo,
o seu desassossego, sem saber como continuar.
– Podes ir que eu tomo conta do rapaz –
ofereceu-se a vizinha.
Laurentina deu início à caminhada
solitária, prosseguindo numa passada decidida até ver diante de si o letreiro: «Centro
de Emprego».
Quando, ao fim de três horas de espera, a
funcionária lhe perguntou o nome respondeu:
– Laurentina Feteira Garces –,
estendendo-lhe os documentos.
Logo que a mulher deu por finda a
inscrição, perguntou:
– Acha que em breve poderei ter alguma
resposta?
– Você quer dizer um emprego?
Laurentina confirmou com a cabeça.
– A senhora está fantasiando, desculpe que
lhe diga. O próximo!
– Ah, sim – respondeu num automatismo, que
os pensamentos não captavam. Deveria queixar-se, reclamar? De que serviria?
Andando sem firmeza, desceu as escadas. Torcendo
as mãos e quase chorando, alcançou a rua. Passou pelo parque de exposições, mas
só havia um anúncio, pedindo um entregador de pizza. Pena que ela não soubesse conduzir uma moto. Por fim, chegou
a casa.
Um mês se passou, até que o toque do telefone
lhe trouxesse um motivo para soltar a pressão que lhe invadia o peito.
Quando desligou, espreguiçou-se e olhou ao
redor. Eram muitas as coisas de que precisava desfazer-se. Eram roupas demais,
loiças demais, móveis demais. Até muitos dos brinquedos teriam de ficar para
trás. O filho começaria cedo a aprender o significado de desapego, mas talvez
isso não fosse mau.
– Posso ficar com este, mamã? Foi o papá
que mo deu.
Era um brinquedo sem graça, um gato-pingado
de má qualidade, mas nele estava todo o amor de quem o adormecera a cada noite,
de quem inventara histórias e o fizera acreditar que a magia faz parte da vida.
– Como é Londres, mamã?
– Fria, meu filho.
Não era só fria de temperatura, era fria
de distância, de isolamento, de solidão, de saudade.
– Jacinto José! – Ralhou a mãe, sentando-o
e colocando-lhe o cinto. À excitação pelo primeiro voo, juntava-se o peso do
longo adeus abraçado à tia, o caminho para o desconhecido, cujo motivo ele
ainda não entendera muito bem. Sabia que «tinha de ser», pelo menos assim
dissera a mãe, mas a tia não era da mesma opinião.
Quando saíram do metro, o frio de Londres
recebeu-os. Estava um dia pardacento de neblina, incerteza e angústia, com
resquícios de neve.
– Parece Natal, mamã.
Caminharam até ao cimo da rua, ela puxando
as malas numa tentativa de que o filho não percebesse como eram pesadas, ele
procurando esconder o secreto desejo de voltar para casa. Recebeu-os uma mulher
de uns cinquenta anos, que a ajudou a carregar a bagagem pela escada estreita,
já que o velho edifício não possuía elevador. O quarto era pequeno, mas tinha
um ar acolhedor.
– Como se chama você, menino lindo? –
perguntou a dona da casa, uma brasileira que chegara a Inglaterra em
perseguição do sonho de ser modelo e acabara dona de uma pensão barata. Um
sucesso diriam muitos, uma frustração achava ela.
– Jacinto.
– Pois muito bem, Jacinto, agora ajude
mamãe a arrumar tudo e depois desça que lhe ofereço um pedaço de bolo.
– Muito obrigada, dona Aline – disse a
mãe.
– Não me agradeça minha filha, sei bem o
que é vir para uma terra estranha. – A voz ecoou num tom de simpatia, que
reconfortou Laurentina. – E se precisar de o deixar comigo enquanto vai
trabalhar, estou às ordens. Escusa de gastar dinheiro à toa – acrescentou,
baixando a voz.
– Como poderia pensar que iria encontrar
um anjo à chegada?
As mulheres sorriram e calaram-se, dando
espaço aos pensamentos, às lágrimas não choradas que pesavam na alma, à
esperança que tentavam não sufocar.
– Aqui tem a chave – disse, por fim, Aline
Rosa afastando-se.
Laurentina abriu, então, as malas e
começou a arrumar o pouco que trouxera. Se tudo corresse bem, depois mandaria
vir o resto, mas por agora, aquilo teria de chegar.
Na manhã seguinte, o coração doeu-lhe,
quando se despediu do filho. Sabia que era estúpida a angústia que sentia, mas
não podia evitá-la.
– Mamã, não estejas triste. Eu fico bem.
– Vai ver que vamos nos divertir imenso e
vou começar a lhe ensinar inglês. Tenho a certeza de que será um bom discípulo.
– O sorriso de Aline Rosa conseguiu sossegá-la um pouco.
– Estás a ver mamã. Qualquer dia já posso
perceber o que dizem na televisão.
– Tens razão, querido. Até logo.
O emprego no lar de idosos agradou-lhe.
Era ocupado quase em exclusivo por imigrantes da américa do sul. O inglês ali
pouco era falado, já que preferiam comunicar-se na sua língua de origem. Talvez
tenha sido isso que a fez sentir-se mais perto de casa. Estava agradecida ao
avô, que insistira sempre em falar com ela somente em espanhol. Agora, esse era
o seu trunfo e tinha a certeza de que, estivesse ele onde estivesse, estaria
orgulhoso dela.
O dia decorreu rápido, em parte pela
novidade do serviço, em parte pela tentativa de fixar cada rosto e atribuir-lhe
um nome. No final da tarde, decidiu ir a pé, ouvindo o estalejar das folhas cor
de oiro a cada passo. Era um percurso de meia hora, que seria muito agradável
se ficasse à beira-mar. Sentiu um nó no estômago. Quando voltaria a ver o mar? Quando
conseguiria sair dali?
Parou num café italiano apinhado de gente
e procurou um lugar para se sentar. Sentia saudades de um expresso. Bebeu-o
mesmo ao balcão e prosseguiu o caminho num passo apressado.
– O que é que escondeste aí? – perguntou
Laurentina, olhando o filho que se sobressaltara quando ela abrira a porta do
quarto.
– Nada – respondeu o menino.
– Mostra lá isso.
Jacinto abriu a gaveta, como a mãe ordenava.
Laurentina desdobrou um papel e começou a
ler.
– É uma oração – esclareceu Jacinto José.
– Foi a dona Aline que me deu, diz que faz milagres.
Olhando para aquelas palavras, a mãe sentiu
vontade de amachucar o papel, mas não poderia cometer tamanha ingratidão.
Afinal, como poderia a mulher adivinhar o descaso de Deus por ela?
– A dona Aline diz que devemos ser sempre positivos
e que assim tudo é possível. Não queres rezar comigo? Eu ainda não sei ler o
que está aí.
Laurentina sentia-se isenta de qualquer obrigatoriedade
de orar, mas como poderia tirar a ilusão ao filho? Repetiram a oração três
vezes. Era assim que faria efeito no dizer sábio de Aline Rosa. Estranho que
ela não tivesse conseguido ser modelo, pensou Laurentina.
Os meses foram passando e ela permanecia
envolvida num permanente luar, ansiando por poder voltar a ver o sol.
Em Londres, quase toda a gente se mostrava
inclinada a viver a própria vida, sem dar espaço aos outros. Aline Rosa era
exceção e companheira inseparável de Jacinto José, que já se desenrascava bem
no inglês de trazer por casa. O tempo de o inscrever no colégio aproximava-se e
isso preocupava a mãe. Como o receberiam as outras crianças?
Aproximou-se da cómoda, abriu a gaveta e
de lá tirou o pequeno papel que há muito ali fora esquecido. Abriu-o e rezou.
Fê-lo, pela primeira vez em muitos meses, com um sentimento de entrega.
«Se não fizer bem, mal também não faz»,
costumava dizer a mãe.
De repente, alguém bateu forte na porta do
quarto, fazendo com que ela desse um salto, e o seu coração disparasse. Quem
poderia ser? Abriu e deixou-se ficar parada, sem reação. Não podia ser verdade.
Os olhos estavam, por certo, a enganá-la.
– Eu disse-te que aparecia – afirmou a
irmã, colocando as malas no chão. – Fiquei cansada de ter um país inteiro para
mim e resolvi vir para um que pudesse partilhar com alguém.
Eva Jesus ficou parada, olhando-a,
esperando o abraço que tardava a acontecer.
Laurentina desviou os olhos. Começava a
entender que havia uma grande diferença entre entregar-se ao desespero ou
acreditar que a vida poderia ser generosa com ela.
– Espera! – disse por fim. – Quer dizer
que vieste em definitivo?
– Hum, hum!
Sem mais palavras caíram nos braços uma da
outra. Ambas aguardavam há muito aquele encontro. A emoção que experimentavam
era talvez a mais forte que alguma vez as unira, decididas a trilharem um
caminho comum.
– Anda! – Laurentina deu a mão à irmã e
apresentou-lhe a cidade. Percorreram as artérias apressadas, esquecidas dos
pingos grossos da chuva, felizes, admirando o verde que crescia em todo o lado.
Quando o chapéu-de-chuva se tornou
desnecessário, Eva Jesus sorrindo, procurou os olhos da irmã, querendo perceber
se a mágoa se esvaíra. Verificou que não, mas nada disse, sabendo a inutilidade
das palavras. Foi Laurentina quem a surpreendeu:
– Eu quero ser forte, esquecer, mas ainda
que a minha mente se esforce por não lembrar, o meu coração toma o comando e
agarra-se a esse amor que quero continuar a sentir. Percebes?
– Sim. Acho que sim, apesar de nunca ter
amado com essa entrega. Deve ser bom.
Nesse dia, talvez para dar as boas vindas
a Eva, a noite nasceu estrelada.
Quita Miguel