domingo, 22 de fevereiro de 2015


VIDA DE COSTAS VOLTADAS

 (Conto com que participei no concurso «Ei-los que partem»)

– Por Deus! Não sei o que faça contigo. Tudo pode mudar, só depende de ti. Não percebo porque te sacrificas dessa maneira – desabafou Eva Jesus, fixando a irmã que calada soltava mais um botão da camisa. Gostava de usar as golas abertas.

Laurentina queria retirar-se, para não continuar a ouvir sempre a mesma conversa, no entanto, ficou ali imóvel, apenas se olhando no espelho e recordando aquele instante que decidira a sua vida. Continuava a revivê-lo com angústia. Observou a imagem refletida. Mantinha o luto sobre os ombros, eco do pesar que lhe ia na alma.

– Ó, mamã! – ouviu gritar.

– Que queres meu querido? – Aproximou-se com a espécie de emoção que só uma mãe experimenta.

Sentia-se consternada cada vez que não conseguia satisfazer-lhe uma curiosidade. «Porque partiu o papá?», perguntara-lhe ele uma vez, e ela emudecera, continuando em busca da resposta.

Diziam-lhe que o reino de Deus era justo, ela duvidava. Por algum tempo, agarrara-se à bíblia, lera todos os versículos, depois entrara numa crise de descrença e hoje impressiona-a quem acredita no que quer que seja.

– Jacinto José!

Ele sorriu, sentado na cama, a chucha bem agarrada entre os dentes.

– Mas, meu filho, tu precisas de dormir. Sabes que a mamã necessita de descansar.

Quando regressou à sala, Eva preparava-se para sair.

– Porque te vais embora tão depressa?

A irmã baixou a cabeça sem lhe responder, depois deu-lhe um beijo e prometeu voltar logo que pudesse.

Laurentina ainda fez menção de repetir a pergunta, mas acabou desistindo e, assim que a porta do elevador se abriu, encolheu os ombros e recolheu-se em casa.

– Ah! O que é que o menino faz aqui descalço?

Três meses se haviam passado sobre o momento em que ficara só para cuidar do filho. Durante quatro dias havia permanecido junto do marido, esperando o milagre que não viera. Hoje, sentia-se abandonada, pela vida, pela sorte, por Deus. Laurentina sabia que a criança não podia continuar a viver naquele ambiente de profunda tristeza em que a casa mergulhara. Apesar disso, não conseguia afastar-se de um sentimento de desgosto, nem conseguia amar menos o pai de Jacinto José do que naquele dia em que se ajoelhara à sua frente e lhe pedira que casasse com ele. Muitas vezes, duvidava de que o que sentia se pudesse modificar. De tal forma a ideia de o deixar de amar era impensável que, só de imaginá-lo, se sentia agredida no seu íntimo.

E assim, neste arrastar-se, se passaram mais quatro meses e era ínfima a diminuição da saudade. A irmã e as primas bem tentavam arrastá-la para reuniões, que ela recusava com a delicadeza possível. No entanto, tinham conseguido apresentar-lhe dois rapazes que se haviam mudado para o bairro há pouco tempo. Queriam, porque queriam, arranjar-lhe um namorado, como se sete meses fossem suficientes para esquecer alguém, em especial alguém com quem se dividiu a vida, se partilhou alegria e tristeza, alguém com quem se gerou um filho. Laurentina pensava em tudo isto, enquanto olhava o recibo da renda, que não sabia durante quanto tempo iria conseguir pagar. Passava cada vez mais tempo sozinha, porque lhe incomodava a felicidade dos outros, não por uma questão de inveja, mas por a alegria reforçar a sua dor e junto dos outros se sentir ainda mais só.

Sentou-se na extremidade da cama, que se tornara grande demais, e resolveu que necessitava de mudar a sua vida, não tanto por ela, mas por Jacinto José. Foi a partir dessa altura, que começou a magicar numa ideia que guardou para si, deixando-a germinar sem pressas.

Quando faltava pouco mais de uma semana para o quinto aniversário do filho, percebeu que não poderia continuar a adiar a decisão que se impunha. Precisava reencontrar a paz que a vida havia apagado e isso implicava, não só abandonar a casa, que se tornara demasiado cara, mas mudar tudo.

Deixou o filho com a vizinha e caminhou, permitindo que fossem as pernas a escolher o destino. Ao fim de uma hora, estava diante da minúscula baía onde brincara em criança e onde conhecera e se apaixonara pelo marido. A superfície da água estava serena, bem diferente do sentimento que a envolvia.

Quando olhava aquela paisagem, chegava a pensar que Deus existia, mas bastava-lhe recordar o último ano para ter a certeza de que estava errada.

– Vem comigo – dizia-lhe ele em sonhos e ela queria ir, mas não podia. Se Jacinto José não existisse… Logo em seguida, recriminava-se por tal pensamento e tomava consciência de que a tristeza era o grande óbice para que pudesse seguir em frente.

Ali mesmo, diante daquele lugar mágico, jurou deitar mãos à vida e acordar do marasmo em que se enterrara.

Dormiu mal naquela noite, inquieta, mortificada pela sua fraqueza, infeliz por se sentir infeliz, obcecada por um círculo vicioso que a agarrava ao passado. Atormentada, levantou-se ainda de madrugada, procurando dar sentido ao remorso que a começava a minar. Como se deixar de ser infeliz constituísse uma traição.

Foi até ao quarto do filho e ficou a vê-lo dormir.

– Como posso saber o que é certo ou errado? – perguntou-se e acrescentou: – Hei! Se tu existes aí em cima, não me queres dar uma resposta?

O silêncio fez-se ainda mais pesado.

– Logo vi que não podia contar contigo – ironizou Laurentina.

 

 

– Agora o que vou fazer? – Laurentina olhava a carta que informava que o contrato não seria renovado, que os seus serviços não seriam mais necessários. No final do mês estaria na rua.

– Moça! – A voz do rapaz soou-lhe longe, ao mesmo tempo que o mundo parecia escurecer. Quando despertou, quase saltou de susto tal era o número de faces que se lhe sobrepunham.

– Afastem-se, deixem-na respirar – disse a mesma voz de rapaz.

– Se calhar está grávida – comentou alguém.

Ela sorriu, um sorriso triste. Como queria que isso pudesse ser uma realidade.

– Venha, vamos sentá-la ali naquele banco. – O rapaz ajudou-a a levantar-se e conduziu-a até à entrada do jardim.

Telefonou à irmã, que apareceu numa inquietação pouco habitual, num silêncio que a assustou ainda mais. Onde estavam os insistentes conselhos?

Sem pronunciar uma palavra, Eva Jesus leu a carta que Laurentina lhe estendera e, em seguida, mostrou-lhe a sua. A bem-aventurança andava longe daquela família. Percorreram a viela até casa de Laurentina, com a revolta a queimar-lhes a garganta.

Na sala, o filho brincava, alheio ao olhar molhado das mulheres, aos gritos sufocados, ao estado de desespero que lhes extorquia a esperança. Que poderiam fazer? Roubar? Que carma terrível era aquele que precisavam cumprir?

– Não faço ideia do que fazer – desabafou Laurentina, pegando na moldura com a fotografia do marido, falando mais com ele do que com a irmã, que parecia ainda mais abatida do que ela.

Jantaram em silêncio e, assim que terminaram de arrumar a cozinha, Eva Jesus desapareceu.

Ficava cada uma com a sua solidão, o seu marasmo, o seu desassossego, sem saber como continuar.

 

 

– Podes ir que eu tomo conta do rapaz – ofereceu-se a vizinha.

Laurentina deu início à caminhada solitária, prosseguindo numa passada decidida até ver diante de si o letreiro: «Centro de Emprego».

Quando, ao fim de três horas de espera, a funcionária lhe perguntou o nome respondeu:

– Laurentina Feteira Garces –, estendendo-lhe os documentos.

Logo que a mulher deu por finda a inscrição, perguntou:

– Acha que em breve poderei ter alguma resposta?

– Você quer dizer um emprego?

Laurentina confirmou com a cabeça.

– A senhora está fantasiando, desculpe que lhe diga. O próximo!

– Ah, sim – respondeu num automatismo, que os pensamentos não captavam. Deveria queixar-se, reclamar? De que serviria?

Andando sem firmeza, desceu as escadas. Torcendo as mãos e quase chorando, alcançou a rua. Passou pelo parque de exposições, mas só havia um anúncio, pedindo um entregador de pizza. Pena que ela não soubesse conduzir uma moto. Por fim, chegou a casa.

Um mês se passou, até que o toque do telefone lhe trouxesse um motivo para soltar a pressão que lhe invadia o peito.

Quando desligou, espreguiçou-se e olhou ao redor. Eram muitas as coisas de que precisava desfazer-se. Eram roupas demais, loiças demais, móveis demais. Até muitos dos brinquedos teriam de ficar para trás. O filho começaria cedo a aprender o significado de desapego, mas talvez isso não fosse mau.

– Posso ficar com este, mamã? Foi o papá que mo deu.

Era um brinquedo sem graça, um gato-pingado de má qualidade, mas nele estava todo o amor de quem o adormecera a cada noite, de quem inventara histórias e o fizera acreditar que a magia faz parte da vida.

– Como é Londres, mamã?

– Fria, meu filho.

Não era só fria de temperatura, era fria de distância, de isolamento, de solidão, de saudade.

 

 

– Jacinto José! – Ralhou a mãe, sentando-o e colocando-lhe o cinto. À excitação pelo primeiro voo, juntava-se o peso do longo adeus abraçado à tia, o caminho para o desconhecido, cujo motivo ele ainda não entendera muito bem. Sabia que «tinha de ser», pelo menos assim dissera a mãe, mas a tia não era da mesma opinião.

Quando saíram do metro, o frio de Londres recebeu-os. Estava um dia pardacento de neblina, incerteza e angústia, com resquícios de neve.

– Parece Natal, mamã.

Caminharam até ao cimo da rua, ela puxando as malas numa tentativa de que o filho não percebesse como eram pesadas, ele procurando esconder o secreto desejo de voltar para casa. Recebeu-os uma mulher de uns cinquenta anos, que a ajudou a carregar a bagagem pela escada estreita, já que o velho edifício não possuía elevador. O quarto era pequeno, mas tinha um ar acolhedor.

– Como se chama você, menino lindo? – perguntou a dona da casa, uma brasileira que chegara a Inglaterra em perseguição do sonho de ser modelo e acabara dona de uma pensão barata. Um sucesso diriam muitos, uma frustração achava ela.

– Jacinto.

– Pois muito bem, Jacinto, agora ajude mamãe a arrumar tudo e depois desça que lhe ofereço um pedaço de bolo.

– Muito obrigada, dona Aline – disse a mãe.

– Não me agradeça minha filha, sei bem o que é vir para uma terra estranha. – A voz ecoou num tom de simpatia, que reconfortou Laurentina. – E se precisar de o deixar comigo enquanto vai trabalhar, estou às ordens. Escusa de gastar dinheiro à toa – acrescentou, baixando a voz.

– Como poderia pensar que iria encontrar um anjo à chegada?

As mulheres sorriram e calaram-se, dando espaço aos pensamentos, às lágrimas não choradas que pesavam na alma, à esperança que tentavam não sufocar.

– Aqui tem a chave – disse, por fim, Aline Rosa afastando-se.

Laurentina abriu, então, as malas e começou a arrumar o pouco que trouxera. Se tudo corresse bem, depois mandaria vir o resto, mas por agora, aquilo teria de chegar.

Na manhã seguinte, o coração doeu-lhe, quando se despediu do filho. Sabia que era estúpida a angústia que sentia, mas não podia evitá-la.

– Mamã, não estejas triste. Eu fico bem.

– Vai ver que vamos nos divertir imenso e vou começar a lhe ensinar inglês. Tenho a certeza de que será um bom discípulo. – O sorriso de Aline Rosa conseguiu sossegá-la um pouco.

– Estás a ver mamã. Qualquer dia já posso perceber o que dizem na televisão.

– Tens razão, querido. Até logo.

O emprego no lar de idosos agradou-lhe. Era ocupado quase em exclusivo por imigrantes da américa do sul. O inglês ali pouco era falado, já que preferiam comunicar-se na sua língua de origem. Talvez tenha sido isso que a fez sentir-se mais perto de casa. Estava agradecida ao avô, que insistira sempre em falar com ela somente em espanhol. Agora, esse era o seu trunfo e tinha a certeza de que, estivesse ele onde estivesse, estaria orgulhoso dela.

O dia decorreu rápido, em parte pela novidade do serviço, em parte pela tentativa de fixar cada rosto e atribuir-lhe um nome. No final da tarde, decidiu ir a pé, ouvindo o estalejar das folhas cor de oiro a cada passo. Era um percurso de meia hora, que seria muito agradável se ficasse à beira-mar. Sentiu um nó no estômago. Quando voltaria a ver o mar? Quando conseguiria sair dali?

Parou num café italiano apinhado de gente e procurou um lugar para se sentar. Sentia saudades de um expresso. Bebeu-o mesmo ao balcão e prosseguiu o caminho num passo apressado.

– O que é que escondeste aí? – perguntou Laurentina, olhando o filho que se sobressaltara quando ela abrira a porta do quarto.

– Nada – respondeu o menino.

– Mostra lá isso.

Jacinto abriu a gaveta, como a mãe ordenava.

Laurentina desdobrou um papel e começou a ler.

– É uma oração – esclareceu Jacinto José. – Foi a dona Aline que me deu, diz que faz milagres.

Olhando para aquelas palavras, a mãe sentiu vontade de amachucar o papel, mas não poderia cometer tamanha ingratidão. Afinal, como poderia a mulher adivinhar o descaso de Deus por ela?

– A dona Aline diz que devemos ser sempre positivos e que assim tudo é possível. Não queres rezar comigo? Eu ainda não sei ler o que está aí.

Laurentina sentia-se isenta de qualquer obrigatoriedade de orar, mas como poderia tirar a ilusão ao filho? Repetiram a oração três vezes. Era assim que faria efeito no dizer sábio de Aline Rosa. Estranho que ela não tivesse conseguido ser modelo, pensou Laurentina.

Os meses foram passando e ela permanecia envolvida num permanente luar, ansiando por poder voltar a ver o sol.

Em Londres, quase toda a gente se mostrava inclinada a viver a própria vida, sem dar espaço aos outros. Aline Rosa era exceção e companheira inseparável de Jacinto José, que já se desenrascava bem no inglês de trazer por casa. O tempo de o inscrever no colégio aproximava-se e isso preocupava a mãe. Como o receberiam as outras crianças?

Aproximou-se da cómoda, abriu a gaveta e de lá tirou o pequeno papel que há muito ali fora esquecido. Abriu-o e rezou. Fê-lo, pela primeira vez em muitos meses, com um sentimento de entrega.

«Se não fizer bem, mal também não faz», costumava dizer a mãe.

De repente, alguém bateu forte na porta do quarto, fazendo com que ela desse um salto, e o seu coração disparasse. Quem poderia ser? Abriu e deixou-se ficar parada, sem reação. Não podia ser verdade. Os olhos estavam, por certo, a enganá-la.

– Eu disse-te que aparecia – afirmou a irmã, colocando as malas no chão. – Fiquei cansada de ter um país inteiro para mim e resolvi vir para um que pudesse partilhar com alguém.

Eva Jesus ficou parada, olhando-a, esperando o abraço que tardava a acontecer.

Laurentina desviou os olhos. Começava a entender que havia uma grande diferença entre entregar-se ao desespero ou acreditar que a vida poderia ser generosa com ela.

– Espera! – disse por fim. – Quer dizer que vieste em definitivo?

– Hum, hum!

Sem mais palavras caíram nos braços uma da outra. Ambas aguardavam há muito aquele encontro. A emoção que experimentavam era talvez a mais forte que alguma vez as unira, decididas a trilharem um caminho comum.

– Anda! – Laurentina deu a mão à irmã e apresentou-lhe a cidade. Percorreram as artérias apressadas, esquecidas dos pingos grossos da chuva, felizes, admirando o verde que crescia em todo o lado.

Quando o chapéu-de-chuva se tornou desnecessário, Eva Jesus sorrindo, procurou os olhos da irmã, querendo perceber se a mágoa se esvaíra. Verificou que não, mas nada disse, sabendo a inutilidade das palavras. Foi Laurentina quem a surpreendeu:

– Eu quero ser forte, esquecer, mas ainda que a minha mente se esforce por não lembrar, o meu coração toma o comando e agarra-se a esse amor que quero continuar a sentir. Percebes?

– Sim. Acho que sim, apesar de nunca ter amado com essa entrega. Deve ser bom.

Nesse dia, talvez para dar as boas vindas a Eva, a noite nasceu estrelada.

Quita Miguel

Sob a quincha


Sob a quincha, Ana Paula empalhava o assento de uma cadeira, enquanto arquitetava como atrairia o pequeno Bruno Miguel para a surpresa que lhe preparava.

Esquecida da dor nas mãos, acelerava os dedos, numa vontade desenfreada de colocar um sorriso no rosto do filho.

Terminada a obra, correu a receber o pagamento e, a caminho de casa, parou em frente da charcutaria. Sob o olhar incrédulo da criança, entrou e disse-lhe:

– Hoje, podes escolher o que quiseres.
 
Quita Miguel
Desafio em 77 palavras com as sílabas de QUINQUILHARIA
 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015


CASAMENTO ESFUMADO

Capitolina sentou-se na primeira fila da igreja, as pernas unidas, as mãos sobre o colo. Passado um pouco, ajeitou o chapéu. Como detestava ter qualquer coisa na cabeça, mas o casamento era de cerimónia, não havia como evitar. Soprou ligeiramente. Arrependia-se de ter escolhido aquela rede que lhe cobria a cara. A comichão no nariz era insuportável, até parecia que lhe bloqueava a respiração. Olhou o relógio. Seria que a noiva não se decidia a chegar? Quase uma hora de atraso. Que falta de respeito.

– Parece que a Ritinha desistiu de casar – bichanou a tia Joaninha.

Capitolina sorriu, mas não respondeu. Se lhe desse corda, a velha não se calava.

«Como é que ela suporta aquele chapéu?», perguntava-se a rapariga.

Agora, que pensava nisso, achava mesmo que nunca a vira sem chapéu, a não ser à mesa. Se calhar até dorme com algum gorrinho.

Sentiu-se tentada a perguntar-lhe porque é que usava sempre aquele apêndice, mas hesitou, receando dar à tia Joaninha o ambicionado pretexto para divagar. No entanto, como a curiosidade lhe formigava na garganta, arriscou:

– Tia Joaninha…

Ouviu-se a música, entrava a noiva e Capitolina continuaria e perguntar-se porque é que a tia Joaninha usava chapéu.

Rita caminhou ao longo da nave da igreja, naquele passo ensaiado, acompanhando a música que sem criatividade fora escolhida. A cada passo, perguntava-se se estaria a caminho da felicidade sonhada.

Olhou o altar, o padre, o futuro marido, os pais, os futuros sogros, os padrinhos, todos pareciam radiantes, esperando dela o sim, o sim a uma vida a dois, o sim à abdicação da liberdade de viver sem horários nem justificações, o sim à partilha de um espaço.

As pernas tremeram-lhe, mas deu o último passo, entregou o bouquet e ajoelhou-se.

Sentiu que o padre falava, mas era incapaz de se fixar nas suas palavras. O que estava ela ali a fazer? Essa pergunta preenchia-lhe todo o pensamento. Sentiu que ao seu lado Natálio se levantava e maquinalmente imitou-o.

Depois percebeu que o silêncio se havia imposto e que os olhares pesavam sobre si. Esforçou-se por se concentrar e, então, ouviu:

– Rita aceita casar com Natálio?

Ela casar? Como casar?

Tentou agir com razoabilidade. Eram tantas as pessoas que aguardavam o seu «sim». 

Mas, no momento da esperada aceitação, as razões que a tinham levado até ali, simplesmente, esvaíram-se. Não havia qualquer motivo para partilhar a vida, para deixar de ser um e passar a ser dois, ela nem gostava de números pares. Todas as razões para dizer «sim» pareceram-lhe vãs, evaporaram-se, deixaram de existir e da sua boca saiu um esplendoroso:

– Não!

O silêncio transformou-se em burburinho, o burburinho, em rumor, o rumor em gritaria, enquanto Rita, levantando o vestido, corria em direção à saída.

– Ah! Grande mulher! – berrou tia Joaninha, arrancando o chapéu da cabeça, e, perante o olhar estupefacto de Capitolina, acrescentou: – Rapariga de coragem, aquela. – Despois, sussurrando, confessou: – Eu não tive tal fibra.
E foi assim que Capitolina ficou a saber que havia ocasiões em que a tia Joaninha não usava chapéu.

Quita Miguel

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015


Vinho de missa

rapazinho acelerava a bicicleta a duas dezenas de quilómetros à hora. Se abrandasse não conseguiria entregar o vinho a tempo da missa, dizimando as rezadeiras que acérrimas marcam presença a cada entardecer.
– Cuidado – diz o padre aterrorizado, pondo a mão na cabeça, vendo a garrafa voar, ameaçando aterrar na escadaria de pedra e estraçalhar-se em mil pedaços.
– Deixe comigo – vozeia  Canhoto, avançando em direção ao projétil, as mãos estendidas.
– Cruzes – gritam todos, quando ouvem zás-trás.

Quita Miguel

Desafio RS nº 22 – todas as frases com 2 Zs

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

CAMINHO ALTERNATIVO

Célia Maria, pela primeira vez naquela tarde, prestou atenção no filho. As mãos atabalhoadas, procurando agarrar três soldados, dois carros ...e um cavalo.
Poisou a faca e gastou algum tempo numa observação minuciosa. Via-se bem que era aparentado do velho Robira, sempre cioso de ter os pertences por perto. E aquela raiva contida…
Com o apoio do marido, afastara-se da família, na tentativa de fugir à sua influência, mas há coisas que se transmitem pelo sangue. 

Perdeu-se no silêncio das recordações do dia, em que chegara da escola mais cedo, esperando encontrar a casa deserta. Porém, deparara-se com um pai que não conhecia e que a surpreendeu de um modo inimaginável.
– Isso, em cima da mesa, é droga?
– É, está calada.
– Mas, o que é que estás a fazer com isso?
– Chiu!
Sempre tinham sido pobres, num universo onde era difícil acalentar a alma. Talvez por isso, ele tivesse procurado um caminho alternativo. Uma via que lhes tirava a fome, mas que também lhes extraía a dignidade.
Uma noite, em que os criminosos a quem o pai tentara passara a perna, o espancaram, bem na sua frente, Célia soube que teria de dizer basta. O pai, estendido no chão da cozinha, olhava-a como um cão ao dono, contudo ela soube ter a força necessária para lhe virar as costas.
– Aqui tens uma manta – dissera, atirando-lha.
Por muito tempo, Célia odiou a ambição do pai e o pérfido desejo de ter sempre mais. Passou pelos anos como uma mulher em guerra, sem ver nem ouvir ninguém. Mas, aquele que viria a ser o seu marido soubera reconhecer nela a natureza integra e ajudá-la a construir a estrada que a afastara em definitivo da família.
Contudo, a singular inconsciência do homem a quem um dia chamou pai parecia persegui-la nas coisas mais profundas da vida. As aparências continuavam a marcar presença, num mundo que ignora a gravidade de avaliar com base em julgamentos superficiais, evitando discutir a essência das coisas. Ao longo dos dias, desprezam-se as melhores coisas da vida: a paz, as horas dormidas no sofá, a água fresca pela manhã, o silêncio em que nos ouvimos.
Por vezes, Célia Maria lamenta que o pai não tenha morrido naquele dia fatídico, mas o velho sempre foi duro. Recuperara e tornara-se ainda mais determinado no caminho que iniciara por desespero e mantivera por avidez. Lamentava, em especial, que os irmãos se tivessem deixado arrastar para um meio onde a vida vale menos do que um copo de vinho.
Levantou-se e aproximou-se do filho.
– Vamos até ao jardim e depois vamos buscar os manos à escola – disse, retirando das mãos da criança os brinquedos.
Subiram pelo caminho estreito e sinuoso, para atalhar caminho. Era uma encosta ingreme, que lhes tirava o fôlego, mas que ela preferia à alternativa movimentada que eram as ruas do centro.
Sentou-se, observando o filho no parque infantil. Queria ser o primeiro em tudo e, se ela não estivesse ali, por certo seria capaz de arrancar outra criança do baloiço onde se quisesse sentar.
No extremo contrário do parque, um homem observava-a. Semicerrou os olhos numa tentativa de quebrar o efeito de contraluz. Um arrepio percorreu-lhe o corpo. Levantou-se, agarrou o filho por um braço e arrastou-o, ignorando os protestos da criança.
A face estava oculta, mas aquele porte não deixava dúvidas. O pai havia-a descoberto. Acelerou o passo até à escola.
– Boa tarde, dona Célia, hoje chegou cedo – disse o porteiro.
– Veio alguém à procura dos meus filhos? – perguntou, sem sequer cumprimentar o homem.
– Não senhora. Deveria?
– Não, não, não deveria. Nunca deixe os meus filhos sair com ninguém a não ser comigo ou com o meu marido, ouviu?
– Certo. A senhora, já avisou várias vezes. Pode estar descansada, que daqui eles não saem. Mas, passa-se alguma coisa? Há algum perigo?
– Não. Não se preocupe. Acho que são só coisas da cabeça de uma mãe assustada.
Lívida, foi sentar-se à sombra da árvore, enquanto aguardava pelo termo das aulas e o pequeno corria pelo recreio.
Haviam já passado dez anos, desde que Célia partira da sua cidade, sem uma palavra, virando as costas à vida que não conseguia aceitar. Após todo esse tempo, continua ainda em busca da paz que deixou para trás, numa época em que a ingenuidade lhe coloria a existência. Para a encontrar, precisa de se voltar na direção das coisas simples e abrir o coração ao amor que a nova família lhe oferece. Os filhos, a natureza, o marido, todos estão de braços abertos, aguardando que ela acredite que o seu coração está sarado, pronto para receber o fluido misterioso daquilo a que teimamos chamar amor. Se, ela ao menos conseguisse esquecer…


Quita Miguel

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

REGRESSO

Safara-se bem na vida. Conseguira ser um dos melhores na sua área. Agora, que a dificuldade de andar se acentuava, estava da hora de descansar. Chegara o momento, por que esperara toda uma vida. Reencontrar a outra parte de si, que deixara para trás.
Leu, com dificuldade, a morada eternizada num pedaço de papel que a emoção molhara, baralhando as letras.
Receoso bateu a porta. Quando se abriu, sorriu e disse:
– É uma honra conhecer-te meu filho.

Quita Miguel

Desafio em 77 palavras baseado na imagem.