quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Finidade

Olhou por cima do ombro, não os conseguindo encarar de frente. Quantas vezes haviam pisado juntos os courts de terra batida? Quantas vezes haviam deslizado para apanhar a bola no momento certo? 
Virou-lhes as costas, estreando o par de ténis acabado de comprar.

– Será que vocês também me conduzirão à vitória?
Com um nó na garganta pegou na velha dupla e com um sorriso no rosto pendurou-a na parede.
– Nunca se sabe o que o futuro reserva.

Quita Miguel

Desafio Escritiva nº 4 – homenagem às sapatilhas

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A ALIANÇA DA DISCÓRDIA



Foi até à janela que dava para as traseiras do hotel. Que vista deprimente, que silêncio medonho. Como sentia falta de casa. Bebeu mais um pouco, à medida que revia pela terceira vez a apresentação que deveria fazer na manhã seguinte. Analisou o tom de voz, assegurando-se de que transmitia seriedade, confiança e dinamismo: uma combinação vencedora.
– Se ao menos eu acreditasse em metade do que digo – comentou num tom sarcástico, observando a própria fisionomia ao espelho.
Mentia de modo deliberado, como se mente no mundo dos negócios. «E se desta vez dissesse a verdade? E se deixasse queimar aquele negócio de dois milhões?»
Sorriu do seu pensamento irreal. Como se ele tivesse coragem de se jogar na figueira e de se ver atirado porta fora a caminho da fila de desemprego. Mas que seria uma boa forma de se vingar pelo facto de o terem obrigado a cancelar as férias, lá isso seria. Uma vingança desproporcional, porém saborosa. Sorriu, um sorriso triste, consciente de que nunca teria audácia para tal.
O telemóvel interrompeu a autocomiseração.
– Olá amor, estava pensando em ti – mentiu também àquela que mais amava.
Prometera à mulher que festejariam todos os aniversários de casamento num lugar paradisíaco e, logo no primeiro ano de celebração, vira-se impedido de cumprir a promessa.
A voz da mulher denotava toda a mágoa. Teria de a surpreender pelo menos com uma prenda à altura da ocasião, em especial agora que a gravidez a tornara hipersensível. No dia seguinte, no freeshop de Milão conseguiria, por certo, algo que abrandasse a fúria.
– Sim Bibiana, vou diretamente do aeroporto para o restaurante. Se me atrasar um pouco, podes ir tomando um aperitivo.
– Quer dizer que vou ter de ficar à seca? Para isso, é melhor esperar em casa. Ou, se calhar, o melhor é mesmo nem sequer ir jantar. Aliás, se quiseres ficar por aí não te acanhes, afinal é apenas o primeiro aniversário de casamento, nada de importante. E sabes muito bem que não posso beber álcool.
– Ó amor, não te estejas a aborrecer. – «Que boca grande a minha, porque é que não me calo?» – Disse aquilo só pensando no caso de poder haver muito trânsito. Vais ver que corre tudo bem e o nosso jantar será maravilhoso.
Ao desligar, invejou os amigos solteiros que podiam escolher livremente as datas a festejar. Porém, de imediato, se arrependeu de tal pensamento. Recordou como o coração vibrara quando Bibiana percorrera a nave da igreja, num vestido que realçava as curvas do corpo, mais do que seria conveniente numa cerimónia religiosa. Contudo, ninguém se atrevera ao mais leve comentário, pelo menos frontal. A personalidade da mulher sempre fora forte, ignorando, por completo, a opinião dos outros. Fora essa característica, uma das principais responsáveis pela sua paixão, bem… essa e aquele corpo escultural. Agora, não tanto.



Despertou confuso, quando a parede do quarto estremeceu. Tremor de terra? Não! Briga no quarto ao lado. Pelo barulho, o aposento deveria parecer um campo de batalha.
Que drama estaria por detrás daquele desentendimento, que o acordara sem pejo? Se ao menos discutissem em português, em inglês ou numa outra língua que ele pudesse compreender, mas as vozes alteradas verbalizavam algo semelhante a chinês.
De novo, alguém era atirado contra a parede, uma cadeira e uma mesa eram arrastadas, vozes furiosas rompiam a noite até que um som metálico pôs termo à discussão.
Por cinco minutos, o silêncio foi absoluto, seguindo-se o som de móveis a serem recolocados no lugar, a porta a abrir e a fechar.
«E se o mataram?», pensou Alberto José. «Talvez devesse telefonar para a receção. E, se depois, a polícia me quer ouvir? E se me obrigam a adiar a viagem? Então, quem morre sou eu. Talvez pudesse espreitar para ver se há movimento. E se vejo alguém a carregar um corpo? Aí é que estou feito.»
Quando, por fim, teve coragem de abrir a porta, o corredor era um perfeito deserto. Fosse quem fosse que ali tivesse estado, desaparecera.

Acordou com a sensação de quem quase não dormiu. Fez o check-out e aguardou os colegas, esperando que ninguém mencionasse as atividades pugilísticas da noite. Ninguém o fez. Ou todos, como ele, queriam esquecer o sucedido, ou sonhara. O mundo, às vezes, surpreende-nos entre o que é e o que parece ser.
Olhou em volta, na esperança de ver um chinês todo esmorrado, que ratificasse a violenta cena, no entanto todos se apresentavam de cara limpa.

Ao sentar-se ao volante do carro, rumo ao aeroporto, sentia-se orgulhoso. Fizera a apresentação com maestria invejável. Percebia isso no olhar dos colegas, tão mais experientes do que ele, mas sem o poder da palavra com que Alberto José abrilhantava qualquer exposição.
«Talvez devesse ter seguido política. Bibiana iria adorar ser primeira-dama.»
– Podem dormir, acordo-vos quando chegarmos – disse aos companheiros em tom de brincadeira, mas que estes levaram a sério, pois após poucos minutos já haviam embarcado para o mundo dos sonhos.
Os primeiros quilómetros, dos 140 que os separavam de Milão, foram percorridos com tranquilidade, numa autoestrada quase sem trânsito. Contudo, quando estavam a cerca de metade do percurso, o nevoeiro começou a apoderar-se da estrada, eliminando quase por completo a visibilidade. Alberto reduziu de modo drástico a velocidade e acendeu os faróis.
Doíam-lhe os olhos, sentia-se cansado e esperava não falhar a saída para o aeroporto. Talvez devesse programar o navegador, porém precisava de colocar toda a sua atenção na estrada.
– Hei! Emídio José acorda! – ordenou, abanando o colega que seguia ao seu lado.
– Onde é que estamos? É pá, não se vê um boi. Falta muito para chegarmos? Eu bem dizia que era melhor termos apanhado o avião em Turim.
– Pois e ter de fazer dois voos.
– Está bem, mas ao menos não estávamos… hei cuidado!
O carro, que seguia na frente, entrou em pião, embateu no raile central e voltou para a faixa da direita, imobilizando-se na berma. Eles passaram ilesos por milagre.
– O que é que aconteceu? – perguntou assustado Florindo.
– Talvez devêssemos parar, para ver o que aconteceu. – Alberto José esperava que alguém lhe dissesse para seguir, mas nenhum dos dois abriu a boca.
Estacionou na beira da autoestrada, com precaução saiu do carro e começou a caminhar em direção ao local do acidente. Emídio José imitou-o, só Florindo permaneceu sentado, as pernas ainda tremendo.
Quando se aproximaram, verificaram que o condutor de outro automóvel, que também parara, falava ao telemóvel.
– Acho que podemos ir embora. Nenhum de nós é médico e já estão a chamar o auxílio. – Sem esperar a concordância de Emídio, Alberto começou a caminhar de regresso ao carro.
O restante percurso foi feito de modo lento, acompanhado pelo avanço veloz dos minutos, encurtando de modo cruel o tempo que os separava do voo.
– Vamos perder o avião. Eu bem dizia que devíamos ter ido por Turim – insistiu Emídio.
– Cala-te lá ó ave agoirenta. Perder o avião é tudo o que não pode acontecer. – Alberto José sentiu o coração acelerar só por pensar em tal probabilidade, mas o universo esteve do seu lado e, após uma correria desenfreada pelo aeroporto, embarcaram rumo a Lisboa.
Já sentado na cochia, respirou fundo ao sentir o avião ganhar o céu e olhou com desdém para a sanduíche que lhe colocaram à frente. Comeu-a, sem prazer, mas satisfeito por, em breve, poder degustar uma bela refeição no seu restaurante favorito.
Folheou a revista de vendas a bordo e rendeu-se ao facto de só poder oferecer, à mulher dos seus sonhos, uma prenda banal. Mais tarde, teria de arranjar forma de se redimir. Guardou o perfume na mala e recostou-se, tentando relaxar, apesar da imagem do carro estatelado na orla da estrada não desaparecer da sua mente. Não podia evitar sentir-se culpado por não ter prestado socorro, e fez o que tantas vezes fazia quando se sentia ansioso: colocou a aliança na ponta dos dedos e fê-la rodar ininterruptamente. Freud teria, por certo, uma explicação para este seu comportamento, mas Alberto acreditava que era melhor ignorar o possível significado.
À medida que o coração foi sossegando, a velocidade giratória foi diminuindo até… até que a aliança lhe saltou do dedo e desapareceu. Incrédulo Alberto José olhava de modo alternado a mão e o chão como se aguardasse que a anilha dourada voltasse por sua livre vontade para o dedo anelar.
Agachado no meio do corredor, olhava para os pés dos outros passageiros, que incomodados se agitavam. Da aliança nem sinal. Num tom cordial, a hospedeira aproximou-se e estendeu-lhe uma lanterna, e Alberto percorreu, mais uma vez, a dezena de filas em torno do seu lugar, enquanto Florindo aproveitava para filmar a cena que no futuro arrancaria, sem dúvida, boas gargalhadas.
O tempo lá fora começou a agitar-se e o sinal de apertar cintos pôs termo à busca. Vencido, Alberto sentou-se e mergulhou a cara nas mãos. Estava perdido.
– Não se preocupe, quando aterrarmos e os passageiros saírem pode procurar com calma – tentou tranquilizá-lo a hospedeira.
Chuva e vento forte acolheram-nos à chegada, fazendo abanar o avião, mais do que o desejado, dando à aliança a oportunidade de se enfiar em qualquer recôndita abertura.
Emídio José e Florindo despediram-se, mal disfarçando o sorriso, e assim que o avião ficou vazio reiniciou-se a busca, agora, não só feita por Alberto José, mas também por hospedeiras e pessoal da limpeza, porém com o mesmo resultado.
– Vamos deixar uma nota na central para o caso de outras equipas a encontrarem – disse a chefe da limpeza e, vendo o ar de desalento do rapaz, acrescentou: – Lamento que tenha de partir assim, de mão vazia.
– Agradeço a sua atenção, mas não tem mais importância. A desgraça está feita. Hoje não é o meu dia.
Cabisbaixo, entrou no táxi, no momento em que o telemóvel vibrava incessante, numa violência que lhe pareceu inusual. Indicou o endereço do restaurante e atendeu, preparando-se para se limitar a ouvir.
– Eu bem sabia que não podia contar contigo. Nunca posso. Onde é que estás? Ou me dizes que estás aqui à porta ou vou-me embora. Erro meu ter vindo. Sou mesmo ingénua, continuo a acreditar no que dizes. O meu maior erro foi mesmo ter casado contigo. Não sei onde é que eu estava com a cabeça.
Aproveitando uma pequena pausa de Bibiana para ganhar fôlego, o marido arriscou:
– Estou no táxi. O problema é da chuva. Qualquer pinga entope esta cidade.
Do outro lado, não houve resposta, apenas o desligar da chamada. Alberto fez um movimento para iniciar nova ligação, talvez a mulher tivesse ficado sem rede ou, quem sabe, a bateria acabara, mas desistiu. E se Bibiana tivesse desligado de modo propositado e se preparasse para abandonar o local? Em breve saberia.
Quando saiu do táxi deixou-se ficar ali no meio do passeio, sentindo a chuva que lhe refrescava a cara. A alma, essa, há horas que estava gelada. Respirou fundo e entrou no restaurante. O empregado acolheu-o com um sorriso, recebeu a mala e o sobretudo, acrescentando, ao mesmo tempo que indicava o fundo da sala:
– A senhora aguarda-o na vossa mesa.
Alberto viu as costas tensas da mulher e aproximou-se em silêncio. Com suavidade deu-lhe um beijo no alto da cabeça e colocou-lhe o perfume à frente.
– Lamento não poder oferecer-te hoje algo mais digno de ti. Perdoa-me, foi um recurso de última hora. Nem imaginas como foi o meu dia. Depois te conto, o importante agora é o nosso jantar. Muitos parabéns, meu amor. – Os lábios dela estavam frios, quando receberam os seus.
– O senhor deseja algum aperitivo? – O empregado salvara-o do silêncio que ameaçava instalar-se.
– Acho que sim. Preciso de descontrair. Olhe, surpreenda-me, estou demasiado cansado para escolher.
De copo na mão, arriscou um brinde. Bibiana começava a mostrar um rosto mais descontraído, ainda poderia ser uma bela noite, pensou.
– Queria brindar ao nosso…
– O que é isto? – interrompeu a mulher de forma brutal, agarrando-lhe na mão esquerda com que ele, de modo inadvertido, pegara o copo. – Onde é que está a aliança? Esquecida nalgum quarto de hotel?
– Perdi-a no avião. Podes não acreditar, mas estava a girá-la, como tantas vezes faço, e a malvada saltou-me das mãos e evaporou-se.
– Pois, podes estar certo de que não acredito. Que desculpa mais esfarrapada. Só gostava de saber como é a galdéria. É italiana ou arrastaste contigo alguma portuguesa?
– Bibiana ouve!
– Tu não me digas mais nada. Como sou parva! – De modo brusco levantou-se e começou a dirigir-se para a porta, depois de forma inesperada regressou até junto da mesa, pegou no copo e, sem uma palavra, atirou-lhe o conteúdo à cara, seguindo de imediato em direção à rua.
No restaurante, ficou apenas o silêncio e um homem destroçado.

Com insistência, Bibiana tocou à porta da casa da irmã até que esta a acolhesse. Precisava de um colo amigo.
– Ó rapariga, estás toda encharcada. O que é que aconteceu? Onde é que está o Alberto?
Incapaz de pronunciar uma palavra, a futura mãe deixou-se cair num choro profundo.
– Anda cá. Senta-te aqui. Vou buscar uma toalha.
Com ternura, a irmã cuidou da grávida, a quem a extrema sensibilidade desproporcionava qualquer acontecimento, se bem que a perda de uma aliança não seja algo de somenos importância.
Entre soluços, prantos e lamentos Bibiana relatou o sucedido:
– Imagina tu que ele teve a lata de dizer que estava a brincar com a aliança e a deixou cair no avião. As brincadeiras que ele teve, sei eu quais foram.
– Talvez ele esteja falar verdade – disse a irmã, ao mesmo tempo que um longo sorriso lhe iluminava o rosto.
– Só me faltava que tu achasses graça a isto tudo. Não percebes o quanto ele me magoou?
– Tem calma. Olha aqui. – A irmã estendeu-lhe o telemóvel. O número de visualizações no facebook, de um homem de rabo para o ar e lanterna na mão, no meio do corredor de um avião, crescia a cada minuto.
Bibiana começou a achar-se a mais injusta das mulheres.
– Tenho de lhe pedir desculpa. Coitado! – Dirigiu-se para a porta, abriu-a, mas retrocedeu: – E se tudo isto não passa de uma artimanha para me persuadir da sua inocência? Capaz disso é ele. O melhor é passar cá a noite.

Quita Miguel



quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Apagar o passado

– Abracadabra!
Que bom seria ter uma palavra mágica que apagasse o passado, que eliminasse aquele dia em que troquei o que me realizava por uma ilusão de estabilidade.
Ao longo dos últimos vinte e muitos anos, esqueci-me do meu eu e representei o papel de profissional responsável. O resultado? Frustração, desinteresse, vazio. 
Permiti que me enganassem quando me disseram que o mais importante era o dinheiro. Não, o mais importante sou EU! Como queria poder voltar atrás.

Quita Miguel

Desafio RS nº 33 – uma história de enganos

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

histórias em 77 palavras: Programa Rádio Sim 672 – 4 Janeiro 2016

Oiça aqui a revolta da máquina de lavar roupa pela voz da Margarida Fonseca Santos​.


histórias em 77 palavras: Programa Rádio Sim 672 – 4 Janeiro 2016: OIÇA aqui o programa em podcast na  Rádio Sim Não abro! – Ó mãe! Chega lá aqui que a máquina não abre. – Não consegues fazer n...

sábado, 2 de janeiro de 2016

Protetor

Protetor nato, Firmino agia apenas com o coração. Protagonista diário da vida, que transformava sempre em festa, nunca protelara o importante, por isso era um velho feliz. O protocolo a que obedecia, ignorando qualquer protesto, era o de proteger o grupo que o acolhera, apesar da sua diferente crença. Continuava a ser o único protestante, mas isso pouco importava, porque ali a religião não tinha protagonismo, o homem sim, e protecionismo era mais do que uma palavra.

Quita Miguel

Desafio nº 102 – muitas palavras com PROT