GANHANDO O MUNDO
– Sai-me
da frente dos pés, que raio! Vá, vai lá para fora.
Mal
a porta se abriu correu pelo jardim, rebolou-se no relvado, correu atrás dos
pássaros. Estava feliz porque reconhecera a movimentação de passeio. Adorava
quando saiam todos juntos.
Só
que naquele dia, para espanto de Damião, após carregarem as malas e entrarem no
carro, não o chamaram. Limitaram-se a partir, deixando-o para trás.
Do
automóvel que ganhava velocidade, partiu um último olhar, que de imediato se
desviou.
Ele
correu, implorando que parassem, que não se esquecessem dele, que o levassem
também, mas o carro ia ficando cada vez mais longe. No final da rua parou no
semáforo. Damião acelerou a corrida. Ia conseguir, ia conseguir, ia conseguir… quando
estava apenas a alguns metros o sinal mudou para verde e ele, apesar da corrida
desenfreada, permanecia cada vez mais para trás. Quando os perdeu de vista, deixou-se
ficar estático no meio do cruzamento sem saber por onde seguir.
– Hei
cão maluco. Parece que queres morrer. – Alguém gritou.
Durante
alguns minutos andou para trás e para diante, depois regressou a casa e
dirigiu-se à janela para se assegurar de que não estava ninguém lá dentro. Tudo
permanecia fechado e silencioso.
Não
sabe por quanto tempo continuou na mesma posição expectante, os olhos fixos no
horizonte como se esperasse por um qualquer sinal. Só que esse sinal não vinha.
Sentia-se entre a rendição e a perseverança, entre a certeza de que fora
propositadamente deixado para trás e a esperança de que tivesse sido apenas
esquecido.
Sentado
à luz da lua deixou-se invadir pelo medo, o medo de ficar sozinho, o medo de
ninguém o querer, o medo de estar, de forma irremediável, perdido no mundo.
Algures,
começou um grilo a cantar. Ao longe, respondeu-lhe outro.
A
menina da casa vizinha começou a acariciá-lo. Com ternura, sentada nos degraus
da entrada, afundava-lhe os dedos no pelo. «Assim está melhor», pensou, mas
logo alguém a chamou, e Damião ficou de novo só.
Não
tem ideia de quantos dias passaram, até que o automóvel chegou à porta de casa
e os donos desceram. Damião saltou em torno deles, mostrando a sua alegria pelo
tão esperado regresso. O dono falava ao telemóvel sem lhe dar atenção, mas o cão
não desistia, rodando á sua volta. Contudo, aquilo não pareceu agradar, pois o
dono revirou os olhos e gritou-lhe para estar sossegado e parar. Confuso,
Damião insistia. Então, o homem começou a ficar furioso, gritou ainda mais alto
e voltou para o telefone.
A
dona, com uma mão nos cabelos agitados pelo vento, metia com pressa a chave na fechadura.
Quando a porta se fechou atrás deles, uma paz miraculosa invadiu-o. A casa
acolheu-o. Pousaram a bagagem e sentaram-se como que dizendo: «eis-nos aqui»,
mas sem proferirem palavra. Damião deitou-se, o focinho entre as patas, olhando
ora para um, ora para outro, esperando a tão aguardada festa. Mas a festa não
veio.
A
dona abriu os braços resignada.
– Vou
dar-te um pouco de leite – disse.
Bebeu-o
com sofreguidão. Há muito que vivia dos restos que conseguia apanhar nos
caixotes ou no prato de algum cão desatento. Não foi dita mais nenhuma palavra.
Ambos sabiam o que acontecera.
Então
o que fazer? Não só naquele dia, mas nos que se seguiriam.
Recordou-se
de quando saiam para trabalhar e ele ficava em casa, sozinho. Gostava de
vasculhar tudo. Por vezes chateado, saltava para as costas do sofá e ficava a
observar o movimento da rua.
Nunca
antes o tinham deixado só, mais do que algumas horas, e nunca fora de casa. Por
alguma razão tudo mudara. Pouco a pouco, descobria a realidade do lugar onde
vivia. Já não pertencia ali, já não era bem-vindo.
Foi
até à porta da rua e ladrou, pedindo que lha abrissem. Quando o fizeram, saiu
sem hesitação.
Andou
até ao passeio, virou-se e deitou-lhes um último olhar. Desistia, naquele
momento, do seu papel de animal de estimação. Era provável que nem dessem pela
sua falta.
Um
grupo de cães vadios atravessava a estrada. Correu e juntou-se-lhes. Podia ser
que pelos da sua espécie, fosse melhor acolhido.
Quita
Miguel
Sem comentários:
Enviar um comentário