FECHADO PARA DESCANSO DO
PESSOAL
Gonçalo
estacionou na beira da falésia, saiu do carro e inspirou profundamente, como se
quisesse absorver todo o ar que o envolvia. Depois deixou o olhar passear em
redor, vendo cada detalhe daquela
paisagem deslumbrante. O verde e o castanho, ora escuro, ora luminoso,
entrelaçavam-se como que num movimento de dança eternizado por algum bastão
mágico, que paralisara plantas e árvores. Nada se movia, nem a mais leve brisa,
nem a mais pequena ave. Até o céu se apresentava anormalmente azul para aquela estação
do ano, sem uma única nuvem que lhe desse movimento. Era como se o mundo
tivesse parado, e ele se defrontasse com uma fotografia.
Tudo aquilo lhe transmitia um sentimento estranho,
confuso, agitado, que não conseguia definir.
O som de uma motorizada, que se aproximava,
trouxe-o à realidade. Olhou o relógio. Se não queria chegar atrasado ao jantar
dessa noite, era melhor meter-se à estrada. Ia ficar noivo. Não pôde evitar um
sorriso sarcástico. Como se tinha deixado enlaçar, de modo a não poder
retroceder? Numa época em que se vivia sem grandes formalismos, como é que ele
podia ficar noivo? Duvidava mesmo que os mais jovens soubessem o significado daquela
palavra.
Aumentou o volume do rádio e deixou-se envolver
pelo som dos blues. Passou uma mão
pelos olhos. Sentia-se cansado, demasiado cansado para pensar com clareza.
Olhou-se no retrovisor. Os olhos eram pequenos, profundos e firmes, sob escuras
e enérgicas sobrancelhas.
Não podia negar que Beatriz era uma mulher
fascinante, linda e culta, mas, existe sempre um mas, nunca se conseguira
libertar do pai. O General comandava a família como se estivesse na mais dura
das missões. Só se fala sobre temas que interessem ao General e é melhor não
ter a veleidade de expressar uma opinião contrária, pois teremos discurso para
mais de uma hora, só com o intuito de demonstrar que estamos errados.
Caminhava para aquele jantar como um condenado para
a última refeição, durante a qual o seu futuro seria sentenciado e não haveria
como voltar atrás. Bem, haver até havia, mas isso seria dizer adeus àquele
descapotável, às roupas de marca, ao whisky de 15 anos. Seria o regresso à vida
que levava antes de conhecer Beatriz, uma vida comum, apagada, insignificante.
Tentava convencer-se que fizera a escolha certa, na
esperança de que tudo fosse diferente quando estivessem casados e pudessem
passar sem o regime militar ou, pelo menos, circunscrevê-lo a um ou outro
almoço por mês.
De repente, sentiu que o carro perdia velocidade,
ao mesmo tempo que o motor silenciava como que adormecido. Devagar virou o
volante de modo a colocá-lo na orla da estrada e deixou que este se
imobilizasse.
O céu estava a mudar de cor. Os primeiros raios
púrpura do crepúsculo começavam a substituir o azul do fim de tarde. Para o ocidente,
o pôr-do-sol dava um tom rosa às nuvens que começavam a surgir, trazidas por um
vento que iniciava a soprar em pequenas rajadas.
Gonçalo girou a chave na ignição. Nada. Tentou de
novo, mas o motor recusava-se a emitir o mais pequeno som que fosse. Tornou-se
evidente que não iria chegar a tempo.
Pegou no telemóvel ao mesmo tempo que procurava com
frenesim o número da assistência em estrada. Só eles o poderiam salvar da
eminente catástrofe. O General nunca permitiria que a única filha casasse com um
irresponsável, que deixava cinco dezenas de convidados à espera, porque
decidira seguir por uma estrada secundária e não tivera o cuidado de o fazer
com a antecedência suficiente, prevendo um eventual percalço. Gonçalo não
estava propriamente em guerra, não sentia necessidade de ter em permanência um
plano B, mas como explicar isso ao General.
Onde colocara o raio do cartão? Sabia que o guardara,
mas onde? Procurou na carteira, no porta-luvas. Por fim encontrou-o. A luz
escasseava. Tinha dificuldade em ver os algarismos.
Começou a marcar o número mas logo se deu conta de que
não havia rede. Saiu do carro, caminhou um pouco para a direita, depois para a
esquerda. Nada.
Começou a sentir um medo misturado com raiva. O
medo de ver o futuro a jogar-se naquele momento e a raiva de se sentir
impotente para o alterar.
Maldito jantar, maldito carro, maldito telefone.
Olhou em volta. Não se via ninguém. O céu começava a ganhar uma tonalidade
cinzento-escura. Desta vez, estava perdido. Não sabia mesmo se amanhã haveria
tempo suficiente para explicações e conclusões. No cimo da elevação, lá bem ao
fundo, viu uma construção que parecia ser um café. Talvez ainda houvesse
esperança.
Subiu a encosta, a passo rápido. A casa apresentava
um ar mal tratado, mas isso pouco importava desde que tivesse telefone.
A luz começava a escassear quando, arfando, chegou
à porta. Ainda teve tempo de ler antes que a noite caísse por completo: Fechado
para descanso do pessoal.
Quita
Miguel
Sem comentários:
Enviar um comentário