domingo, 9 de fevereiro de 2014


FECHADO PARA DESCANSO DO PESSOAL

 
Gonçalo estacionou na beira da falésia, saiu do carro e inspirou profundamente, como se quisesse absorver todo o ar que o envolvia. Depois deixou o olhar passear em redor, vendo cada detalhe daquela paisagem deslumbrante. O verde e o castanho, ora escuro, ora luminoso, entrelaçavam-se como que num movimento de dança eternizado por algum bastão mágico, que paralisara plantas e árvores. Nada se movia, nem a mais leve brisa, nem a mais pequena ave. Até o céu se apresentava anormalmente azul para aquela estação do ano, sem uma única nuvem que lhe desse movimento. Era como se o mundo tivesse parado, e ele se defrontasse com uma fotografia.

Tudo aquilo lhe transmitia um sentimento estranho, confuso, agitado, que não conseguia definir.

O som de uma motorizada, que se aproximava, trouxe-o à realidade. Olhou o relógio. Se não queria chegar atrasado ao jantar dessa noite, era melhor meter-se à estrada. Ia ficar noivo. Não pôde evitar um sorriso sarcástico. Como se tinha deixado enlaçar, de modo a não poder retroceder? Numa época em que se vivia sem grandes formalismos, como é que ele podia ficar noivo? Duvidava mesmo que os mais jovens soubessem o significado daquela palavra.

Aumentou o volume do rádio e deixou-se envolver pelo som dos blues. Passou uma mão pelos olhos. Sentia-se cansado, demasiado cansado para pensar com clareza. Olhou-se no retrovisor. Os olhos eram pequenos, profundos e firmes, sob escuras e enérgicas sobrancelhas.

Não podia negar que Beatriz era uma mulher fascinante, linda e culta, mas, existe sempre um mas, nunca se conseguira libertar do pai. O General comandava a família como se estivesse na mais dura das missões. Só se fala sobre temas que interessem ao General e é melhor não ter a veleidade de expressar uma opinião contrária, pois teremos discurso para mais de uma hora, só com o intuito de demonstrar que estamos errados.

Caminhava para aquele jantar como um condenado para a última refeição, durante a qual o seu futuro seria sentenciado e não haveria como voltar atrás. Bem, haver até havia, mas isso seria dizer adeus àquele descapotável, às roupas de marca, ao whisky de 15 anos. Seria o regresso à vida que levava antes de conhecer Beatriz, uma vida comum, apagada, insignificante.

Tentava convencer-se que fizera a escolha certa, na esperança de que tudo fosse diferente quando estivessem casados e pudessem passar sem o regime militar ou, pelo menos, circunscrevê-lo a um ou outro almoço por mês.

De repente, sentiu que o carro perdia velocidade, ao mesmo tempo que o motor silenciava como que adormecido. Devagar virou o volante de modo a colocá-lo na orla da estrada e deixou que este se imobilizasse.

O céu estava a mudar de cor. Os primeiros raios púrpura do crepúsculo começavam a substituir o azul do fim de tarde. Para o ocidente, o pôr-do-sol dava um tom rosa às nuvens que começavam a surgir, trazidas por um vento que iniciava a soprar em pequenas rajadas.

Gonçalo girou a chave na ignição. Nada. Tentou de novo, mas o motor recusava-se a emitir o mais pequeno som que fosse. Tornou-se evidente que não iria chegar a tempo.

Pegou no telemóvel ao mesmo tempo que procurava com frenesim o número da assistência em estrada. Só eles o poderiam salvar da eminente catástrofe. O General nunca permitiria que a única filha casasse com um irresponsável, que deixava cinco dezenas de convidados à espera, porque decidira seguir por uma estrada secundária e não tivera o cuidado de o fazer com a antecedência suficiente, prevendo um eventual percalço. Gonçalo não estava propriamente em guerra, não sentia necessidade de ter em permanência um plano B, mas como explicar isso ao General.

Onde colocara o raio do cartão? Sabia que o guardara, mas onde? Procurou na carteira, no porta-luvas. Por fim encontrou-o. A luz escasseava. Tinha dificuldade em ver os algarismos.

Começou a marcar o número mas logo se deu conta de que não havia rede. Saiu do carro, caminhou um pouco para a direita, depois para a esquerda. Nada.

Começou a sentir um medo misturado com raiva. O medo de ver o futuro a jogar-se naquele momento e a raiva de se sentir impotente para o alterar.

Maldito jantar, maldito carro, maldito telefone. Olhou em volta. Não se via ninguém. O céu começava a ganhar uma tonalidade cinzento-escura. Desta vez, estava perdido. Não sabia mesmo se amanhã haveria tempo suficiente para explicações e conclusões. No cimo da elevação, lá bem ao fundo, viu uma construção que parecia ser um café. Talvez ainda houvesse esperança.

Subiu a encosta, a passo rápido. A casa apresentava um ar mal tratado, mas isso pouco importava desde que tivesse telefone.

A luz começava a escassear quando, arfando, chegou à porta. Ainda teve tempo de ler antes que a noite caísse por completo: Fechado para descanso do pessoal.
 

Quita Miguel

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