DEIXANDO-SE IR
Virgínia
e Wilson partiram em direções diferentes, deixando-me a indecisão de quem
seguir. Não pretendia enfrentar a vida sozinha, mas também não queria ter de
escolher entre um deles. Afinal, até ontem éramos inseparáveis.
Lembrei-me
das vezes que abdicara dos meus sonhos para que a nossa união permanecesse
indestrutível, e agora, ambos me viravam as costas e se viravam as costas. Éramos
um triângulo desfeito e só havia duas formas de o consertar. Ou encontrávamos
um caminho comum, ou dois teriam de abraçar o caminho do outro.
Segui
para casa, sentindo-me uma criatura espezinhada. A cada passo, a cabeça
gritava-me para seguir em frente, enquanto no coração se instalava o pânico e construía
um imenso pesar. Uma legião de pensamentos revoltosos começou a ganhar uma
torturante dimensão.
Antes
de entrar em casa, cobri-me com um manto de indiferença para ocultar a dor. Não
iria dar à minha mãe o gosto de me atirar à cara: «Estás a ver como eu tinha
razão. Tenho sempre. Fartei-me de te avisar que não devias ser dependente de
amizades. Ninguém é confiável. Quando menos esperas, viram-te as costas. Agora,
talvez me dês razão.»
Não,
não lhe ia dar esse gosto. No entanto, no íntimo, não posso deixar de reconhecer
que ela não está de todo errada, só não gosto que se vanglorie, fazendo-me
sentir cravejada de espinhos. Sei que me deixei emaranhar numa teia tecida de
linha podre, da qual não sei como sair.
Sou
uma criatura simples que se
comove com facilidade, uma sonhadora que se perde nas nuvens, um ser que se
abraça às árvores. Como posso pensar seguir arquitetura ou design industrial? Eu converso com a natureza, construo sonhos
coloridos, mas Virgínia ou Wilson não precisam de sonhar para se sentirem vivos.
–
Não… não. Desta vez, não vou ceder – afirmo diante do espelho, numa tentativa
de me autoconvencer, apesar da cratera que se abre no meu peito.
Que
motivo tenho eu para abdicar de mim, pergunto-me ao longo do dia, enquanto tento
colar os cacos em que o meu coração se transformou. Uma ligeira batida na porta
do quarto apanha-me desprevenida e quando a porta de abre, ainda limpo as
lágrimas.
–
Então, já disseste à tua mãe que vamos para arquitetura? – pergunta Virgínia,
que sem cerimónias se atira para cima da cama.
Olho
para o chão, porque não tenho coragem de a encarar e, numa tentativa de afogar
as palavras que se recusam a sair, bebo diretamente do gargalo da garrafa de
água que tenho sempre à cabeceira da cama. Depois penso: «Talvez arquitetura
não seja tão mau assim. Posso criar jardins internos ou envolvendo os edifícios.
A dificuldade pode estimular-me a imaginação e dar-me o ponto de partida para criar
novas soluções. E depois, posso sempre dedicar-me ao meu jardim nos tempos
livres. É! Talvez arquitetura não seja uma má ideia.»
Por
volta das oito e meia saímos, às nove estamos diante da casa de Wilson.
–
Gosto muito de vos ver – diz ele, convidando-nos a entrar.
Enquanto
eles falam, eu distraio-me com os meus pensamentos, imaginando-me daí a alguns
anos, depois de ter concluído o curso na Universidade, com louvor, claro,
porque quando me meto numa coisa é para ser uma das melhores.
– Achas
que temos uma vida privilegiada? – Oiço Virgínia perguntar, com o ar
provocatório que gosta de usar, e estico o ouvido na direção deles.
–
Privilegiada, não! Se temos várias hipóteses de escolha é porque somos bons. –
Wilson sempre se achou com direito a tudo e nunca se deixa perturbar pelas
tentativas de Virgínia para o arreliar.
Os
argumentos prosseguem por mais algum tempo, e percebo que ela está quase a convencê-lo
a mudar de ideias, e que arquitetura é, cada vez mais, uma realidade possível.
Releio
o meu coração e sinto-me enojada com a minha fraqueza. De repente, tudo fica
turvo.
Reabro
os olhos a tempo de ver o médico a sair. A enfermeira, com um sorriso no rosto,
dá-me a boa notícia de que fora apenas uma queda de tensão. Se ela soubesse a
tensão em que a minha vida se transformou, compreenderia o quanto está errada.
Os
meus pais arrastam-me até casa enquanto, a cada trinta segundos, me pergunto: «Porquê?
Porque é que não consigo ser eu mesma?»
–
Já sei que escolheram arquitetura – oiço o meu pai dizer, olhando-me pelo
retrovisor.
–
O quê? – pergunto de forma automática.
–
Não imaginas como fiquei orgulhoso com a tua escolha. Estou contente por o bom
senso ter tomando conta da tua cabeça, esqueceres essa ideia absurda de
paisagismo e seguires as minhas pegadas.
Engulo
em seco e emudeço de novo. Como posso trair as expetativas do meu pai?
Encolho-me
no banco e penso: «Quem sabe, quando festejar o meu décimo oitavo aniversário,
ganho coragem para ser eu?!»
Quita
Miguel
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