OLHANDO O MAR
Manfredo
limpou a cera dos ouvidos com o lápis e começou a concentrar-se na contagem.
Primeiro as notas, depois a pilha de moedas que se encontrava na caixa
registadora. Impressionado, assentou o número numa folha de papel e despejou o
dinheiro para dentro do saco. Fora um bom dia.
–
Ele vai adorar este peso, não vai, senhora Valentina? – perguntou, agitando o
saco.
Valentina
não lhe respondeu. Adormecera, com a cabeça ruiva pousada num monte de jornais
velhos, acumulados em cima da mesa. Manfredo observou-a: o cabelo caído sobre a
testa e os malares vermelhos do blush que, com nervosismo, espalhara até aos
olhos.
A
porta almofadada abriu-se com força, e o jovem dirigiu-se ao balcão, batendo no
chão com as biqueiras metálicas das botas de cowboy. Manfredo, com um sorriso
velado, estendeu-lhe o saco e um papel com o valor.
O
rapaz piscou-lhe o olho e saiu, deixando a porta bater. Valentina acordou,
levantando-se espavorida.
–
Está na hora de ir andando. Já fechámos – esclareceu Manfredo com brandura.
A
velhota colocou o chapéu, recolheu os pertences, atirando-os para dentro da bolsa
e, com lentidão, dirigiu-se para o táxi, dando ao motorista o endereço da casa
de repouso. O nome era apropriado, ali não se vivia, repousava-se, por isso ela
escapava sempre que podia. Por vezes, limitava-se a vaguear por uma estação de
comboios. Gostava de ver aquele vaivém de gente que tem um lugar para onde ir.
Outras vezes, escolhia o café de Manfredo, refugiando-se do frio e do mau
tempo.
Manfredo
fechou as persianas, deu a volta à chave e saiu, tentando proteger-se da chuva
que começava a cair com fúria.
Um
arrepio percorreu-lhe os ombros, ao ouvir o som forte das ondas. Parecia que a
água queria levar tudo consigo. Aquele mar traiçoeiro e sinistro, cujos
remoinhos e correntes ceifam vidas todos os anos.
Pensou
na família, ao passar em frente à fábrica. Uma estrutura grande, parecida com
um celeiro, que abrigava rolos de tecido, mesas de corte, máquinas de costura
enormes e gente desesperada. Gente sem perspetiva, apática, num mundo
contemporâneo cego pelo sucesso económico.
Esta
gente fascinava-o e confundia-o ao mesmo tempo. Era gente sincera, mas também intolerante.
Viam nele o inimigo, que é necessário defrontar pelo simples facto de ter
procurado outro destino.
As
ruas começavam a ficar inundadas. Esperava que a senhora Valentina tivesse
chegado ao lar antes daquele dilúvio.
Ao
cabo de um quarto de hora, entrou em casa, escorrendo literalmente.
Despiu-se,
vestiu o pijama e ligou a música. Depois, fechou os olhos e esqueceu-se de si
próprio, absorvendo o universo através de cada nota musical. Imaginando-se a
dirigir uma orquestra, ignorou que não passava de um mero empregado de bar. Então
viveu, viveu um sonho com força de realidade. Um sonho engrandecido, do tamanho
imensurável da sua criatividade.
Acendeu
um Marlboro, olhando pela janela da sala. A chuva parara. Eram quase oito e
meia. Passara uma hora, desde que a chuva começara a agredir a cidade,
transformando as ruas em ribeiros de água agitada, que corriam em direção ao
mar. Ao som da música, misturava-se o das sirenes dos bombeiros, que acorriam aos
pedidos de ajuda dos menos afortunados. Sarjetas entupidas faziam as águas
subir em poucos minutos, e, ano após ano, a cena repetia-se sem que daí se
tirasse qualquer lição.
O
sino tocava numa cadência fatigante, anunciando que algum pescador se havia perdido
naquele mar feroz. Ao ouvir as ondas, Manfredo imaginou o pequeno barco a ser
devorado pela água esfomeada de vida, vingando-se por a desventrarem a cada
dia.
Também
a senhora Valentina olhava o mar da janela da sala de casa de repouso, que
ficava numa esquina da zona ribeirinha, uma parte da cidade onde, após o
percurso paralelo de alguns quilómetros, a Alameda Santo António e a Av.
Marginal se cruzavam. Era uma casa com ar condicionado, televisão a cores e horas
a mais. Às vezes, deixavam-nos beber uma cerveja. Então, parecia que as horas
ganhavam vida e os minutos aceleravam.
Valentina
fora professora primária por mais de quarenta anos. Vivera sempre rodeada de
crianças, agora trocara-as pelos velhos. Olhando em redor, rui à gargalhada até
ficar com os olhos cheios de lágrimas. Deixara de conviver com a primeira
infância, para conviver com a segunda.
Quando
parou de rir, reparou em diversos pares de olhos fixos nela. Sem perder a
compostura, serviu-se de mais chá e olhou para fora. Estava escuro como breu, mal
dava para ver o mar.
Embrenhou-se
nos seus pensamentos noturnos. Sentia-se com demasiada energia para estar ali,
no meio de gente que se limitava a esperar a morte. Teve vontade de saltar para
cima da mesa e gritar que acordassem, que reagissem à chegada da velhice, que
não a deixassem vencer sem lhe dar luta. Mas não fez nada, porque uma onda de
nervosismo e de embaraço a percorreu. Sentiu-se ridícula, tão ridícula que riu
de si mesma.
–
Chega por agora – disse a empregada, apagando a televisão que ninguém via. – Vá
lá. Está na hora de dormir.
Um
a um, todos se foram levantando e abandonando a sala. Só Valentina permaneceu
ali, a olhar o escuro na esperança de vislumbrar um pouco de futuro.
Quita
Miguel
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