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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

ACELERA
 
Foram poucas as vezes em que acabei por viajar com eles.
– Vai devagarinho, não há pressa – repetia, sem cessar, durante a...
s viagens, enquanto o meu neto, ignorando-me, insistia em pisar no acelerador.
– Não percebo porque te borras de medo. Que raio! Isto é uma autoestrada, queres que vá a setenta à hora? – respondia-me, com maus modos, a meio das viagens.
Não me falou assim, quando lhe paguei as últimas prestações do carro. Nesse momento, foi todo mesuras, avozinha para cá, avozinha para lá…
Desta vez, quando o telefone tocou, atendi só para lhe declarar que não ia para o Algarve.
 
Quita Miguel
 
Drabble - Desafio: Algarve

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

TANGO
 
Atravessou o oceano de barco, suportando o enjoo a cada balancear, avançando em busca de fortuna. Escolhera a Argentina, acreditando nos relatos que lera, porém depressa percebeu que sonho e realidade nem sempre combinam....

«Quando serei rico?», era uma mera pergunta de retórica, que se fazia para não se deixar derrotar, cada vez que tomava lugar no camião de recolha de lixo. 

 Um dia, cansado daquele arrastar diário, saltou a meio do percurso, virando as costas aos caixotes e dando o peito ao tango. 

 Hoje, a sua vida é feita de música, dança e pouco dinheiro, mas isso que importa?

Quita Miguel

Drabble para o tema: Tango

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

LIVRE

Estava a sorrir. Se alguém conseguisse imaginar a sensação de poder ver a linha do horizonte. Quando transpusera o portão e deixara de estar confinado à cela que partilhara por dez anos, tudo ganhara uma nova dimensão.

– O que deseja? – perguntou a empregada da esplanada.

Pediu um café e assustou-se com o preço, mas achou que merecia aquele pequeno luxo. Afinal, estava a reencontrar-se com a vida.

Saboreou-o, sentindo cada gota escorregar pela garganta com suavidade. Depois, cruzou as mãos no colo e deixou-se ficar ali, somente a olhar o mar.

Amanhã, pensaria no que fazer. Hoje, queria apenas viver.

Quita Miguel

Drabble para o tema «Regresso»

quinta-feira, 24 de julho de 2014


Mar

Por longo tempo, tentei que os meus pés se firmassem no chão, que as minhas mãos sentissem a solidez da terra, que o meu ser se habituasse à placidez da vida, procurando esquecer a perda que as águas insanas haviam tragado.

Mas o meu olhar perdia-se no horizonte na busca de um caminho sinuoso, instável, imprevisível. Então, descobri o que sempre soube: que a terra não é o meu lugar.

Sinto falta do balancear suave a transformar-se em equilíbrio precário, do cheiro a peixe que me invade as narinas.

Hoje, regressei à traineira e fiz as pazes com o mar.
Quita Miguel

domingo, 25 de maio de 2014


DENÚNCIA

Depois de enfiar a cabeça pela porta para se assegurar de que o corredor estava vazio, dirigiu-se para o elevador.
Sentiu-se reconfortado ao verificar que ninguém o abordou até chegar ao -3.

Retirou a gazua do bolso e, num modo silencioso, introduziu-se na sala de arquivo. Sorriu ao descobrir a capa com os documentos que denunciariam o deputado. Mas o sorriso durou pouco.

Antes que compreendesse o que se passava, uma voz atrás de si disse:

– Olha, olha. Não é o enxerido jornalista?

Saltou por cima da mesa, correu até à porta, mas esta fechou-se-lhe na cara.

Agora, estava feito!

Quita Miguel

Desafio Drabble: Aventura

segunda-feira, 19 de maio de 2014


PARTIDA

– Uau – exclamou Mário, vendo o autocarro que estacionava em frente à escola.

– Rói-te de inveja – disse Martina, sorrindo-lhe em ar de provocação.

– Para com isso – ordenou a professora com rispidez, ao mesmo tempo que organizava a entrega das bagagens.

O cântico dos miúdos aumentava de intensidade.

Junto ao portão, Mário acompanhava a preparação da viagem. Pouco lhe importava ficar em terra. Nunca gostara de acampar. Então porque se sentia assim, quase como se não conseguisse respirar?

Não era o ficar por ali que lhe doía, era aquela saudade de Martina que se amarrara já ao peito e insistia em permanecer.

Quita Miguel

Desafio Drabble: Saudade

quinta-feira, 15 de maio de 2014


Amizade


O cão levantou-se e seguiu-o. Quando viraram a esquina, começou a chover.

Apenas quem os conhecesse bem poderia perceber os leves traços de ansiedade, a indicar que iam numa missão importante.

O duo chegou, por fim, ao destino. Havia sido um longo e molhado caminho, percorrido a pé, até à porta do hospital.

O homem entrou, e o cão permaneceu estático, em silêncio, aguardando, ninguém sabia o quê. Até que, na janela do primeiro andar, surgiu um menino de olhar inquieto. Ao encontrar o que buscava, o sorriso iluminou-se, e a quietude do animal transformou-se num alegre abanar de cauda.

Quita Miguel

Desafio Drabbel: Encontro

domingo, 4 de maio de 2014


Peruca

– Cento e qualquer coisa – disse Maria Ana.

– E tu achas que eu sou louco de esbanjar dinheiro dessa maneira? – perguntou o pai, realçando o mau-humor com que iniciava cada manhã.

A rapariga afastou-se, o olhar baixo. Um olhar de meditação, não de derrota.

Remexeu na cesta de tricot da avó e, com paciência e desvelo, foi entrelaçando cada fio.

Espreitou na porta do quarto e vendo que a mãe estava acordada, sentou-se ao seu lado e, num gesto de ternura, colocou-lhe a peruca de lã na cabeça.

– Mamã, ficas tão linda, mais do que quando tinhas cabelo. Pareces um arco-íris.
 
Quita Miguel
 
Drabble: tema - Mãe

segunda-feira, 28 de abril de 2014


Médico à força

– Perdão! Mas há muita gente…
O olhar do pai fê-lo estremecer e interromper a frase. Sabia que seria uma solução errada procurar impor a sua opinião, ainda que fosse a certa e que se tratasse do seu futuro, da sua realização ou frustração.
Queria gritar «Não! Sou eu que decido!», mas girava-lhe a cabeça, ao mesmo tempo que o coração disparava por medo de se ver enredado na profissão que não queria.

Não podia falhar no mais importante, mas a cobardia silenciava-o.
Nascera numa família de médicos, e essa condição ameaça escravizá-lo, logo a ele que nem podia ver sangue.
Quita Miguel

terça-feira, 22 de abril de 2014


FUNERAL

Colocaram o caixão na borda da sepultura.

Não era momento de pensar em tristezas. Ele sempre insistira numa despedida alegre. Partia para uma nova morada, que acreditava seria de harmonia.

Amigos olhavam-se inseguros, não habituados à condição de pessoas felizes numa hora de despedida.

Atravessei o relvado e parei diante do grupo. Sentia-me como um usurpador, tomando-lhe o lugar de leader, a ele que permanecia à beira da cova.
 
Iniciei os primeiros movimentos. Um pouco constrangidos, todos me seguiram numa dança frenética, que só abrandou pelo receio de escorregar, quando a chuva nos decidiu banhar. Seria batismo? Não. Era Abril.

Quita Miguel

Tema do desafio drabble: Abril

terça-feira, 15 de abril de 2014


Penhasco
 
O agiota, sorrindo-lhe, estendeu a mão para receber o colar. Examinou cada pérola como se desconfiasse da sua autenticidade e, por fim, pagou-lhe menos de metade do real valor.
– Então, até para a semana – bradou o homem de trás do balcão, quando o cliente, curvado, ganhava a rua.
Carlos Sérgio pressionou as notas contra o peito, jurando que aquela seria a última vez. Mas não foi. Àquela se seguiram tantas outras.
Hoje, saiu do casino de bolsos vazios e despido de algo que pudesse empenhar.
Passou pelo agiota, virou à direita e caminhou para o penhasco em busca de redenção.

 
Quita Miguel