ENTRE DOIS COMPASSOS
Com
suavidade, como que estudando cada passo, atravessou a areia até ao início da mata.
Aí vestiu a túnica de linho branco e caminhou em direção à cabana, que se
ocultava entre as árvores. A porta abriu-se com um leve rangido, deixando
vislumbrar o contorno dos móveis envoltos em penumbra. Foi até à lareira e
acendeu-a. Não porque estivesse frio, mas porque gostava do agitar das chamas e
do esplendor que estas proporcionavam, dando um ar místico ao ambiente.
Ouviu
o arfar que provinha do quarto ao lado. Valdo abriu um pouco a porta, só o
bastante para se certificar de que tudo estava em ordem. Depois dirigiu-se à
cozinha e preparou uma refeição colorida. Vestia-se sempre de branco, mas em
tudo o mais, desejava que a cor se impusesse. Como um verdadeiro chefe, decorou
o prato. Em seguida, foi até à sala e compôs uma mesa romântica, iluminada em exclusivo
pela lareira e pelas velas que acendeu. Abriu o vinho que guardara para uma
ocasião especial. Afastou-se um pouco e observou. Tudo parecia perfeito, mas
sentia que faltava algo.
O ligeiro
balançar das folhas junto á janela emitia um som agudo, cadenciado. Era isso.
Faltava música. Teria de ser algo delicado, mas ao mesmo tempo forte, profundo,
decidido, sem perder o romantismo. Algo que o levasse para além do infinito, que
lhe permitisse esquecer os limites do tempo, que desse som aos seus sonhos.
A
Avé Maria de Franz Shubert invadiu o ar, preenchendo cada canto da sala,
embalando a atmosfera acolhedora de luz e cor.
Valdo
foi até ao quarto e com delicadeza pegou em Ubaldina ao colo. Levou-a até à
sala e sentou-a face à lareira, de modo que pudesse apreciar a dança incessante
das chamas.
Fora
aquele estranho nome a aproximá-los. Um nome de sonoridade particular que a
marcava como pessoa impar, como alguém exclusivo que não poderia mais
soltar.
Com
dedos ternos, afastou-lhe os cabelos da face e acariciou-lhe o rosto. Era
bonita. Apesar de tudo, era bonita.
Serviu
o jantar e com mão firme levou-lhe à boca a iguaria, que com amor preparara.
Ubaldina
sentia-se fraca, sem forças. Era como um fardo inerte a quem custava engolir.
Então, Valdo colocou-lhe a palhinha entre os lábios e ofereceu-lhe um pouco de
sumo de frutas. Soube-lhe bem aquele líquido açucarado a descer pela garganta.
Parecia até que lhe dava alguma vida.
Valdo
sentou-se, saboreou o vinho, brindou e deliciou-se com o jantar. Deveria ter
sido cozinheiro, mas a vida levara-o para outros caminhos.
Para
a sobremesa fizera um doce de chocolate e amêndoa. Um creme que Ubaldina experimentou
com prazer. Era bom sentir algo doce numa existência que lhe fora sempre
amarga.
Valdo
sentia que chegara a hora. A hora em que tudo se conjuga num único caminho, em
que tudo adquire sentido, em que o presente e a eternidade se fundem.
Só
naquele momento, ele conseguia sentir a essência da felicidade. Era como se a
alma emitisse um eterno sorriso, que extravasasse para o mundo.
Um
imenso tremor sacudiu-lhe o corpo, no instante em que o acorde da música subia
de tom. Os seus lábios expressaram um leve sorriso, ao mesmo tempo que o olhar
se dirigiu para o jornal jogado em cima do sofá. As pupilas dilataram-se ao ler
na 1ª página “Assassino em Série Capturado”.
Sob
as suas mãos, o corpo convulsionado de Ubaldina aquietou-se.
Em
breve, perceberiam que estavam enganados.
Quita
Miguel
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