segunda-feira, 7 de julho de 2014


ENTRE DOIS COMPASSOS

 Entrou no mar, quando o sol principiava a descer, dourando o areal, que se estendia até ao bosque. Sem pressa, permitiu que a água lhe fosse cobrindo o corpo, deliciando-se com o suave ondear que lhe acariciava a pele. Por algum tempo, deixou-se boiar com placidez. Gostava daqueles entardeceres de verão, dos dias que com lentidão convidam a noite a chegar. A lua refletia-se no mar, dando-lhe um brilho marmóreo, que contrastava com o alaranjado do sol, que sumia no horizonte.

Com suavidade, como que estudando cada passo, atravessou a areia até ao início da mata. Aí vestiu a túnica de linho branco e caminhou em direção à cabana, que se ocultava entre as árvores. A porta abriu-se com um leve rangido, deixando vislumbrar o contorno dos móveis envoltos em penumbra. Foi até à lareira e acendeu-a. Não porque estivesse frio, mas porque gostava do agitar das chamas e do esplendor que estas proporcionavam, dando um ar místico ao ambiente.

Ouviu o arfar que provinha do quarto ao lado. Valdo abriu um pouco a porta, só o bastante para se certificar de que tudo estava em ordem. Depois dirigiu-se à cozinha e preparou uma refeição colorida. Vestia-se sempre de branco, mas em tudo o mais, desejava que a cor se impusesse. Como um verdadeiro chefe, decorou o prato. Em seguida, foi até à sala e compôs uma mesa romântica, iluminada em exclusivo pela lareira e pelas velas que acendeu. Abriu o vinho que guardara para uma ocasião especial. Afastou-se um pouco e observou. Tudo parecia perfeito, mas sentia que faltava algo.

O ligeiro balançar das folhas junto á janela emitia um som agudo, cadenciado. Era isso. Faltava música. Teria de ser algo delicado, mas ao mesmo tempo forte, profundo, decidido, sem perder o romantismo. Algo que o levasse para além do infinito, que lhe permitisse esquecer os limites do tempo, que desse som aos seus sonhos.

A Avé Maria de Franz Shubert invadiu o ar, preenchendo cada canto da sala, embalando a atmosfera acolhedora de luz e cor.

Valdo foi até ao quarto e com delicadeza pegou em Ubaldina ao colo. Levou-a até à sala e sentou-a face à lareira, de modo que pudesse apreciar a dança incessante das chamas.

Fora aquele estranho nome a aproximá-los. Um nome de sonoridade particular que a marcava como pessoa impar, como alguém exclusivo que não poderia mais soltar. 

Com dedos ternos, afastou-lhe os cabelos da face e acariciou-lhe o rosto. Era bonita. Apesar de tudo, era bonita.

Serviu o jantar e com mão firme levou-lhe à boca a iguaria, que com amor preparara.

Ubaldina sentia-se fraca, sem forças. Era como um fardo inerte a quem custava engolir. Então, Valdo colocou-lhe a palhinha entre os lábios e ofereceu-lhe um pouco de sumo de frutas. Soube-lhe bem aquele líquido açucarado a descer pela garganta. Parecia até que lhe dava alguma vida.

Valdo sentou-se, saboreou o vinho, brindou e deliciou-se com o jantar. Deveria ter sido cozinheiro, mas a vida levara-o para outros caminhos.

Para a sobremesa fizera um doce de chocolate e amêndoa. Um creme que Ubaldina experimentou com prazer. Era bom sentir algo doce numa existência que lhe fora sempre amarga.

Valdo sentia que chegara a hora. A hora em que tudo se conjuga num único caminho, em que tudo adquire sentido, em que o presente e a eternidade se fundem.

Só naquele momento, ele conseguia sentir a essência da felicidade. Era como se a alma emitisse um eterno sorriso, que extravasasse para o mundo.

Um imenso tremor sacudiu-lhe o corpo, no instante em que o acorde da música subia de tom. Os seus lábios expressaram um leve sorriso, ao mesmo tempo que o olhar se dirigiu para o jornal jogado em cima do sofá. As pupilas dilataram-se ao ler na 1ª página “Assassino em Série Capturado”.

Sob as suas mãos, o corpo convulsionado de Ubaldina aquietou-se.

Em breve, perceberiam que estavam enganados.

Quita Miguel

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