GEOMETRIA
DA VIDA
O mergulho do sol marcava a
interrupção da luz, que ressurgiria no dia seguinte com todo o vigor, mas
também com toda a leveza, assinalando uma ininterrupta viagem geométrica.
Quando o sol tocou com doçura o rio,
Alberto levantou-se. A aprazível espera do entardecer estava prestes a
terminar, dando lugar à noite. Uma noite quente de verão, que uma suave brisa
tornava menos sufocante. Tal experiência induzia-lhe um sentimento de mistério
e de vibração, que se traduzia na sensação de estar mais vivo.
Olhou em volta como se procurasse
alguém. Na varanda, viu o irmão, que fumava um cigarro, de costas voltadas. Jeans e camisa preta, cabelos ao vento,
brilhando sob a luz do entardecer, a mão pousada na anca num gesto jocoso e o
pé apoiado na floreira vazia. Como eram diferentes. Porfírio dominava o mundo
com aquele jeito alegre de ser. Ele deixava-se dominar pelo mundo com o seu
jeito tímido de ser.
Deu-se conta que pouco sabia dele.
Talvez, como irmão mais velho, devesse esforçar-se mais, mas sente-se sempre
demasiado cansado ou demasiado receoso para manter um diálogo. Todos sabemos que
o mundo é cruel, então porquê dar-lhe armas? O melhor é guardarmo-nos para nós
mesmos.
Passou a mão pelos cabelos e ajeitou
a camisa. Com lentidão guardou tintas e pincéis. Mais uma vez, se entretivera a
admirar a natureza e abandonara a aguarela apenas começada.
No dia seguinte, voltaria a
sentar-se à beira do rio e sabia já, que, mais uma vez, o seu olhar se perderia
na geometria da vida.
Parou no bar, antes de entrar em
casa, e recostou-se no banco para pensar durante alguns instantes. Um criado aproximou-se,
estendendo-lhe a lista, que Alberto olhou com indiferença. O que queria mesmo
era poder abandonar-se naquele banco. Encomendou, não por que tivesse fome, mas
para afastar de si o par de olhos que se impacientava. Reparou num padre que o
observava e, por uns instantes, olhou-o nos olhos, mas logo se sentiu pouco à
vontade, apesar de, por norma, não subverter os princípios da igreja.
Fez uma pausa nos devaneios para saborear
a tosta. Até que lhe estava a saber bem.
De repente, ouviu-se um reparo
ríspido, vindo de uma mesa situada perto da parede mais distante. Não conseguiu
compreender o que diziam, mas a confusão foi suficiente para silenciar com
brusquidão toda a sala. Esta explosão trouxe-lhe à memória as suas duas últimas
relações. Algures na trajetória da vida, a sua maneira de ver as coisas mudara.
Ao recordar os últimos seis anos, estava certo de que a experiência valera a
pena.
«Não nasceste para salvar o mundo,
ou o teu irmão, ou seja quem for», pensou. «Nasceste para…». Não conseguiu
terminar a frase.
Foi até ao jardim, ao lado do bar, e
deixou-se ficar por ali, parado atrás do banco de cedro, voltado para o rio. Colocou
uma mão sobre o estômago, na tentativa de desfazer o nó, mas este insistia em
permanecer. Olhou para o relógio. O irmão já deveria ter saído, estava na hora
de ir para casa.
Mal entrou, poisou as coisas e dirigiu-se
para a varanda. Sentou-se numa das cadeiras de baloiço e observou a noite, que estendia
o seu manto negro sobre a vila. Todo o lugar estava imerso em obscuridade, à
exceção do bar e de uma pequena construção de madeira de carvalho onde haviam instalado
o posto da polícia, e cujas persianas desconjuntadas deixavam filtrar faixas de
luz.
«O que é que se passa? Porquê este
nó no estômago?», perguntou-se.
Estava habituado a confrontar-me com
gente adulta, aprendera a fingir e dissimular com alguma habilidade. O difícil era
olhar para dentro e ter a coragem de ver a realidade sem lentes coloridas que a
distorcessem.
Levantou-se para ir buscar um copo
de água. Olhou para o relógio de parede, pensou melhor, preparou um café e
voltou a sentar-se com um álbum de fotografias sobre os joelhos.
Naquele momento, era como se
pertencesse a outro mundo. Não conseguia desviar do pensamento, os momentos que
ele e Melina haviam passado juntos naquela sala, onde ela enfiava um lenço na
boca, para que o cunhado não a ouvisse arfar mais ruidosamente, ou gemer.
Num gesto brusco fechou o álbum e
levantou-se. Bastava de viver do passado, de reviver de modo contínuo a mesma
cena. Ela partira, não era? Então que fizesse boa viagem.
Sabia o quanto precisava mudar e
como era absurdo aquele medo antecipado de fazer ou não fazer alguma coisa. Mas
sabia também, que sozinho não teria chegado a lado nenhum. Fora ela a
incentivá-lo a pintar, quando ele não acreditava que fosse capaz e, hoje, não conseguiria
viver sem o fazer.
Deu-se um prazo, assim teria todo o
tempo para se organizar. Deu-se um mês. Um mês para dar um pinote no ramerrame,
para rumar em direção ao que a sua alma pedia, mas que, até então, se recusara
a escutar.
Vendeu tudo o que podia. Comprou o
bilhete de avião e partiu, rumo àquela praia distante, onde o sol se punha
sobre o mar.
Hoje é feliz. Acorda ao som do
restolhar do mar, numa cabana de madeira. Aí, pinta e vende os quadros aos turistas,
que querem levar uma recordação da praia paradisíaca que muitos visitam, mas
onde só alguns vivem.
Quita Miguel
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