terça-feira, 15 de julho de 2014


CAMINHO INTERROMPIDO


– Mas que olhar triste é esse?

– Não vem ninguém. Vais ver que não vem ninguém – lamentou Vitor, olhando desconsolado a chuva que não parava de cair. Era uma chuva forte, ininterrupta, gelada, que ameaçava arruinar-lhe o dia de anos.

A avó, com calma, pegou-lhe na mão e afastou-o da janela.

– Não é por olhares com fixação a chuva, que ela vai parar de cair. Senta-te aqui. Vou contar-te uma história.

– Uma história? – O rapaz animou-se.

– Sim, uma história que se passou há muitos, muitos anos. Eu era um pouco mais velha do que tu. Foi no dia em que fiz 15 anos.

A avó já lhe captara a atenção, antes de ele se sentar no chão de pernas cruzadas, bem na sua frente, para não perder nem um pedacinho. Gostava quando ela contava histórias antigas.

– Naquele dia, coloquei o vestido mais bonito para celebrar a penda que os meus pais me deram.

– Como é que se celebra uma prenda? – perguntou Vitor, um pouco perdido.

– Quando uma prenda não é uma coisa, mas a realização do que mais se deseja.

– E o que é que tu querias?

– Conhecer a cidade. Naquele tempo as distâncias eram maiores, e era raro sair-se da aldeia. Por vários meses, os meus pais puseram de parte cada centavo que conseguiam poupar e, naquele dia, deram-me o bilhete de comboio. Eu teria de ir sozinha, porque não havia dinheiro para mais.

– E foste sozinha para a cidade? – A expressão de Vitor era um misto de admiração e incerteza.

– Fui. A minha madrinha estaria à espera na estação. Ela casara com um engenheiro, e viviam lá há três anos. O meu pai levou-me na carroça até ao comboio. As pernas tremiam-me de ansiedade, mas também de algum receio quando entrei na carruagem. Nunca antes saíra da aldeia e tinha uma viagem de três horas pela frente. O assento ao meu lado estava vazio. Coloquei aí o cesto com os legumes, as frutas acabadas de colher, o presunto, enfim, algumas oferendas para a madrinha.

– Ó avó, mas se eras tu que fazias anos…

– Pois é, mas naquele tempo era normal levar-se alguns produtos do campo para as pessoas que se visitava na cidade. Era uma maneira de agradecer a hospitalidade com que eram recebidos.

– Então e depois? – quis saber o neto.

– Depois o comboio partiu. Eu coloquei a cabeça fora da janela, até deixar de avistar o meu pai ao longe, sempre de braço no ar. Era uma sensação estranha, aquela de o deixar para trás. O comboio foi avançando, parando em algumas estações até enfrentar a serra numa subida lenta. Por vezes, parecia mesmo que queria parar. Atravessámos vales floridos. Nem dava pelo passar do tempo, tão absorvida estava pela paisagem. Até que, de repente, o comboio parou, ali no meio do nada. Não se via uma estrada, uma casa, nada.

– Então porque é que o comboio parou?

– Não sabíamos. Primeiro ficámos todos calados, esperando que recomeçasse a andar. Mas nada. Então, algumas pessoas levantaram-se, começaram a ficar inquietas, falando todas ao mesmo tempo. Comecei a assustar-me. Não percebia o que estava a acontecer, mas sabia que aquilo não era normal. Passados longos minutos apareceu o maquinista, dizendo que não podíamos avançar, porque caíra um poste de eletricidade sobre os carris, alguns quilómetros mais à frente. Também não podíamos retroceder porque a última estação há muito que ficara para trás. Teríamos de permanecer ali até que retirassem o poste e ninguém sabia quanto tempo isso ia levar.

– E ficaram lá muito tempo?

– A noite toda.

– Oh! E tu passaste os anos ali, no meio do nada?

– É verdade. Só conseguia pensar na minha madrinha, no jantar que me queria oferecer e no teatro a que iríamos em seguida. Era a primeira vez que eu ia ao teatro e, em vez disso, estava ali sentada num comboio.

– Deves ter ficado muito triste. – Vitor olhou para a janela, observando a chuva e avaliando se a sua tristeza da avó seria maior do que a sua.

– A princípio fiquei. Tão triste que um rapaz que viajava na mesma carruagem veio ter comigo para me tentar animar, pensando que eu estava com medo.

– E não estavas?

– Um pouquinho, mas não era por isso que estava triste. Contei-lhe o que se passava. O rapaz disse: «Lamento!», afastou-se e eu fiquei ali a olhar a escuridão. Depois, vi que algumas pessoas acendiam uma fogueira e estendiam ao pé uma manta grande, daquelas dos piqueniques, sabes?

Vitor confirmou com a cabeça.

– Sobre a manta cada pessoa colocava uma coisa. Eu não percebia o que era. Fiquei curiosa, peguei no cesto e fui até lá. Todas as pessoas tinham um cesto, um saco ou um cabaz e de dentro dele tiravam fruta, bolo, presunto, queijo, chouriço. Um a um, todos iam depositando alguma coisa. Eu escolhi a mais bela maçã que encontrei no cesto e coloquei-a na manta. Quando já todos haviam contribuído, juntámo-nos em redor da fogueira e o rapaz, que falara comigo no comboio, começou a tocar acordeão, acompanhado pelas vozes que entoavam a canção de parabéns. Tudo aquilo era para mim. Em poucos minutos, ele preparara a minha festa de anos, a melhor de toda a minha vida.

Vitor e a avó olharam pela janela. A chuva parara e o sol fazia força para romper as nuvens.

– Acho que vais ter a tua festa de anos.

Vitor levantou-se e agarrou-se ao pescoço da avó. Como era bom tê-la ali.

– Nunca mais viste aquele rapaz?

– Vi. É o teu avô.

Quita Miguel

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