A DERRADEIRA VIAGEM
Não precisaria de muita coisa. Duas malas
seriam suficientes. Os olhos percorreram o interior do guarda-roupa, que as
portas escancaradas expunham sem pudor. Escolheu com desvelo cada peça,
recordando como se haviam introduzido na sua vida. Aquela comprara-a no Brasil,
quando estivera em Fortaleza, a outra trouxera-a da Grécia, de Mikonos.
Demorou-se, sentindo o toque de seda da écharpe de tons esverdeados, a sua cor
preferida. Assinalava uma data importante. Bodas de ouro não são para qualquer
um, muito menos nos tempos que correm. Fora afortunada durante esses cinquenta
anos, brindada com um amor sincero e partilhado.
Levava pouca coisa, sim, mas tudo possuía um
significado especial. Por isso, escolhia cada peça sem pressa. Era da sua
história que se tratava.
A meio da tarde tudo estava pronto. As malas
aguardavam-na à porta. Só ela faltava.
Percorreu cada divisão com o prazer da
memória e o peso da despedida. Observou-as com olhos de contemplação.
Começou pelo quarto onde o marido, durante
tanto tempo, a aconchegara e que, há alguns anos, a recebia sozinha a cada
noite. Nunca tivera filhos e com a morte do marido passara a contar só consigo.
Da família fora-se distanciando ao longo dos anos. Diferentes maneiras de
pensar, objetivos diversos, discordâncias, motivos para percorrerem caminhos
diversos que seguiam em paralelo, sem nunca se cruzarem.
Os amigos, um após o outro, haviam também
ficado para trás. Uns optando por terras distantes, outros falecendo antes de
tempo. Agora, podia mesmo dizer que estava por sua conta e risco. Não que isso
a assustasse, ou mesmo lhe desagradasse. Sempre fora bastante independente. Do
que sentia falta era de conversar, de reviver momentos passados, de ter quem
compreendesse o que sentia a cada instante.
Entrou no escritório. Naquela secretária o
marido registara, na velha máquina de escrever, os mais belos textos. Nunca se
entendera com computadores. Dizia que a falta do papel lhe tolhia a imaginação
e lhe bloqueava a criatividade.
Pegou na moldura e contemplou com ternura a
fotografia do casal no Corcovado. Mesmo agora, passados mais de doze anos,
podia reviver a imensa paz que a invadira quando, do cimo da escadaria, se
deparara com o Rio de Janeiro a seus pés. Imenso, belo de uma beleza que só um
verdadeiro artista consegue descrever. Só então se voltara e encarara o Cristo
para se sentir ainda mais esmagada, insignificante, um ser banal face ao que
aquela estátua significava.
Olhou em volta, admirando as centenas de
livros que preenchiam as paredes. Milhões de palavras, de pensamentos, de
ideias, de sentimentos forravam aquela sala. Escolheu um livro e folheou-o.
Quantas vezes fora aberto, examinado, apreciado? Não fazia ideia. Muitos deles
herdara-os, e traziam já consigo uma história de vida, à qual a sua se adicionara.
Agora, estavam prontos para seguir o seu caminho, disponíveis a encantar outros
olhos, abrir outras mentes, doutrinar outros espíritos.
A partir da próxima semana, fariam parte do
legado da biblioteca municipal, a quem os doara. Tranquilizava-a saber que seriam
bem cuidados, quando ela se fosse.
Há algum tempo, fora-lhe diagnosticado
Alzheimer. Sabia que, com mais ou menos morosidade, o cérebro começaria a
degenerar, perdendo as faculdades mentais. Fora então que decidira escrever o
final da sua vida. Até essa altura, não pensara muito no que fazer quando um
dia não pudesse mais viver sozinha. Mas a doença obrigara-a a tomar consciência
de que, em breve, deixaria de ser a pessoa autossuficiente que sempre se
orgulhara de ser.
Informara-se, com detalhe, sobre a evolução
da enfermidade. Queria conhecer em pormenor o que o futuro lhe guardava.
Registava já, se bem que com algum
espaçamento, alterações da memória episódica. Esses incidentes iriam agravar-se
com a progressão da doença e arrastariam consigo défices visuo-espaciais e de
linguagem.
Só lhe restava uma solução. Procurar um lugar
onde pudessem cuidar dela e que lhe fosse acolhedor. Um dia, quase sem querer,
deparou-se com esse espaço. Um lar perdido no meio do nada, com a natureza como
moldura. O marido teria aprovado. Pena que não a pudesse acompanhar. Ou talvez
fosse melhor assim. Iria sofrer, quando se percebesse esquecido.
Verificou uma última vez que fechara o gás, a
água e apagara as luzes. Estava tudo.
Não. Faltava ainda uma coisa. Regressou ao
escritório, pegou na moldura e colocou-a numa das malas. Iria levá-la consigo.
Dentro de pouco tempo, não saberia quem estava ao seu lado, nem onde ou quando
a fotografia fora tirada, mas seria a prova de que tivera uma vida, um amor,
uma história.
Pegou nas malas e saiu, deitando um último
olhar para o interior do lar, que a acolhera durante mais de cinquenta anos. O
táxi aguardava já lá em baixo.
– Dona Zélia vai de viagem?
– Viagens, viagens… Sim, pode dizer-se que
vou de viagem – respondeu com um suave sorriso.
Entrou no elevador e disse para consigo: “Vou
para a derradeira viagem.”
Quita Miguel
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