sexta-feira, 21 de agosto de 2015




CONTRATO

Ele deu a mesma explicação, que os rumores haviam já antecipado, mas Carlota Leovegilda recusava-se a aceitá-la.
– OK. Não queres acreditar não acredites. Não tarda nada, vais saber que falo a verdade – declarou Danilo.
Quando a haviam chamado para incluir a equipa, Carlota achara-se a pessoa mais afortunada da vida. Dera o seu melhor, superara-se mesmo, e agora Danilo vinha dizer-lhe que não era pelo trabalho que ela ali estava, que a razão era outra.
– És tão ingénua. – O rapaz olhava-a com desdém.
– Muito bem, até posso ser ingénua, mas nada disto faz sentido. Que mais é que ele te disse?
Danilo limitou-se a sorrir, virar-lhe as costas e sair.
«Imbecil!», teve vontade de gritar, mas retraiu-se. Arrumou as coisas, dando o dia por terminado, mas apenas no escritório, porque na sua cabeça o dia colou-se à noite de insónia. Não era pessoa que se conformasse com uma meia verdade que ressoasse sob os panos, queria a realidade gritada ao mundo. Afinal, nada tinha a esconder, nunca tivera vocação para transgressora.
«O ofício de viver é, ao mesmo tempo, o mais simples e o mais complexo», costumava dizer-lhe a mãe, quando a pressentia desanimada. «É um eterno aprendizado. É com os erros que limamos os acertos. Não atingimos a perfeição, mas sempre podemos melhorar.»
Sentiu saudades de casa. Assim que amanheceu, telefonou à mãe, procurando encontrar nela a pessoa que a tranquilizaria, e não pôde acreditar, quando ouviu a corroboração da possível existência de um motivo oculto para a sua contratação:
– Pois pode – dissera a mãe sem qualquer hesitação.
«Danilo tem razão, Danilo tem razão», era tudo o que conseguia pensar.
Nessa manhã, entrou pela porta principal decidida a conhecer a verdade. Pareceu-lhe que cochichavam à sua passagem, mas isso pouco lhe importava. Hoje a janela seria escancarada e que ninguém a tentasse dissuadir que ir até ao fim. Bateu com determinação na porta da direção e aguardou o convite para entrar. Avançou pronta para discutir, mas o que escutou deixou-a sem argumentos.
– Precisávamos apenas que o teu pai cedesse. Contigo por perto era mais fácil. Ele sabia que a qualquer momento te poderia perder.
Queria dizer que ela correra risco de vida, por causa de um pai que não via há mais de vinte anos e de quem nada sabia?
– Tu até trabalhas bem – prosseguiu o diretor –, apercebemo-nos disso ao longo destes meses, mas já não nos és útil e temos muitos outros que podem realizar o teu trabalho. Talvez não o façam com tanto profissionalismo, mas fazem-nos com menos pruridos. Danilo! – chamou.
O lambe-botas entrou, sem se fazer esperar, e entregou-lhe um envelope, voltando a sair.
– Aqui tens o pagamento do último mês – disse o diretor. – Acrescentei um bónus, afinal, indiretamente, fizeste-nos ganhar muito dinheiro.


Carlota Leovegilda teve vontade de rasgar o cheque e atirar-lhe os pedacinhos à cara, como se vê nos filmes. Provavelmente era isso que ele esperava, mas tal atitude apenas revelaria que, para além de ingénua, era burra. Trabalhara sim e muito, merecia bem qualquer cêntimo que ali estivesse.
Só quando ganhou a rua se deu conta de que estava desempregada. Espreitou para dentro do envelope. Aquilo era uma fortuna.
Quem seria aquele pai de quem lembrava apenas o nome e de quem a mãe se recusava a falar?
Aquele que, para a salvar, entregara nas mãos de outrem algo tão valioso. Voltou a olhar para o valor do cheque. Com certeza, seria melhor não saber.

Quita Miguel


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