sábado, 6 de dezembro de 2014


INDEPENDÊNCIA

 
Avaliando a vida que levava, admitiu que a primeira tentativa de independência se revelara dolorosa. Procurava reagir, mas não se conseguia perdoar pela intempestiva saída de casa.

Chegou-se ao fogão, mais para se aquecer do que para cozinhar qualquer coisa. Comer era uma obrigação que cumpria para sobreviver, isenta de qualquer prazer. À noite, na cama, procurava a presença que não estava e isso doía-lhe fundo.

Pensou nas prestações que ainda lhe faltava pagar pela televisão que quase nunca acendia, e isso afastou-lhe o sono. Que pena, não ter um botão para hibernar.

«Para com os lamentos, fecha os olhos e deixa-te ir», repetia, na tentativa de enganar a insónia.

Deveria existir um elixir do amor, que se pudesse tomar em doses pequenas, mas regulares. E mais uma coisa: um elixir contra a burrice e a intempestividade. À falta disso, levantou-se, enrolou um cigarro e foi sentar-se na varanda, envolto num cobertor. Mentalmente enumerou o que lhe fazia mais falta, o que perdera e o que nunca tivera.

Compreendeu que entrara naquela fase da vida em que não se pertence a lado nenhum, vive-se numa terra de ninguém, num meio mundo, numa meia verdade e num absoluto desgosto.

A comunicação reduz-se a um «bom dia», quando se entra no emprego, e a uma «boa tarde», quando se sai. E não está longe o dia em que, com indiferença se chega e parte, e isso transmite-nos o conhecimento do que é a solidão. Contudo, continua-se a mentir para o mundo, dizendo que se está: «Muito bem, obrigado», escondendo as lágrimas que escorrerem pelo rosto com facilidade. Os lenços acumulam-se espalhados pela casa, mas camuflamos-lhes a utilização, dizendo, que estamos a ficar um pouco constipados.

Terminou o segundo cigarro e com ira, reganhou o lugar na cama. Impotente, permitiu que a raiva crescesse dentro dele, procurando um culpado que não havia. Sabia porquê: preferia dar força à revolta, a sentir-se pusilânime, arrastando-se ao longo dos dias.

 

– Pois é… mais um dia – resmungou quando o despertador tocou, cedo demais para quem prolongara a noite.

A mão acariciou a almofada que ninguém usava, mas que ali permanecia, para lhe evidenciar o espaço vazio, enxotando a harmonia que não se permitia sentir. Fechou os olhos e sem se aperceber mergulhou num sono profundo, onde ouvia a voz dela cantando. Procurou-a sem cessar, seguindo uma voz que não tinha corpo. De repente, algo lhe agarrou as pernas. Esforçava-se por avançar, mas as trepadeiras amarinhavam, rodeavam-lhe já os joelhos, remetendo-o à imobilidade.

Ao longe viu-a surgir, envolta numa névoa, que se ia desvanecendo à medida que ela caminhava na sua direção. Pessoas começavam a aproximar-se, cumprimentando-a, felicitando-a, envolvendo-a, camuflando-a.

Um som estridente envolveu o ar e ele abriu os olhos sobressaltado, procurando-a e, mais uma vez, encontrando o lugar que ainda lhe pertencia, mas que ela não ocupava mais.

Atendeu o telemóvel.

– Mas onde raio é que andas? O buffet tem de ser serviço dentro de meia hora. Achas que dou conta do recado sozinho?

Saltou da cama, vestiu-se. Não havia tempo para tomar banho ou fazer a barba. Correu para o carro. Só lhe faltava perder também o emprego. Nesse caso, a desgraça seria completa.

– Até que enfim. Já fiz quase tudo. Isto de uns só receberem e os outros trabalharem….

– O que é que falta fazer? – perguntou, cortando a lamentação do colega.

Atirou-se aos ovos, mexendo-os com um pouco de leite e ervas do jeito de que ela gostava. Adorava cozinhar para ela e, um dia, sem perceber porquê, deixara de o fazer. Tudo lhe começara a parecer pesado, repetitivo, sem graça. Ela estranhara e ameaçara:

– Se um dia eu souber que andas metido com outra mulher!...

Ele cansou-se. Ansiou por liberdade, por solidão, por silêncio, por ausência de horários e de compromissos e saiu com um adeus.

Colocou os ovos na travessa e dirigiu-se para a sala de receção que começava a encher-se. Não fazia ideia do que se tratava. Nunca o preocupava a quem servia, apenas o que servia. Olhou em volta, certificando-se de que nada faltava. Então, uma voz sobressaiu do meio das restantes:

– Eu vou optar por uns ovos. Parecem do jeito de que eu gosto.

Virou-se e viu-a, sorrindo para alguém que não era ele e, nesse momento, percebeu que a perdera definitivamente.

Quita Miguel

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