O INSOLENTE
Com
uma fúria zelosa, a que não estava habituada, Zahira olhou a sala, quase pronta
para a festa. Foi à cozinha buscar cubos de gelo, colocou mais uma cadeira e deu
uma última vista de olhos ao ambiente. Estava tudo impecável.
Ouviu
um leve bater à porta, no preciso momento em que a família, que mora do outro
lado da casa geminada, começava o que ameaçava ser mais uma discussão. Só
esperava que não fosse interminável.
Colocou
um sorriso e abriu. Era Bela que, para surpresa, não vinha sozinha. Engoliu a
raiva que o inesperado sempre lhe provoca e esforçou-se por ser simpática, mas
ao ver Adão agir como se conhecesse a casa, indo direito ao velho rádio de
consola transformado em bar e servindo-se de uma bebida, não pôde evitar dizer,
com escárnio:
–
O teu amigo chegou cheio de sede.
Chocada,
Bela olhou-a com reprovação.
–
Como o mundo é pequeno. – Adão interpunha-se entre as amigas, ignorando o
mal-estar que se instalara.
–
Desculpe!? – Zahira olhou-o incrédula.
– Quando
a conheci com a Bela, lá na rua do castelo, disse para comigo: «Espero vir a
encontrá-la algum dia» e, agora, aqui estamos.
Zahira
procurou no baú da memória, contudo os olhos negros como tições de Adão, nada
lhe diziam. Fez menção de se afastar, mas o ar de censura da amiga, manteve-a
por perto, prolongando os instantes de angústia até ao soar da campainha.
A
sala começou a povoar-se de pessoas alegres e educadas, contrastando com a
falta de modos do penetra.
Da
casa ao lado, irrompeu o som de loiça a estilhaçar e fez-se um longo silêncio,
quebrado apenas pelos sons violentos que Adão produzia a beber e a sugar os
cubos de gelo.
A
anfitriã perguntava-se que mais iria acontecer. Não queria parecer indelicada,
mas assim que Adão se afastou, desta vez com um Martini na mão, dirigiu-se à
amiga, manifestando a sua revolta:
–
Nunca pensei que tu descesses tão baixo.
–
Ele é viril e agressivo. É isso que te irrita.
– Não
seja parva. Vamos encarar a situação, Bela.
–
O quê? O que se passa? Queres discutir isto aqui mesmo? – A voz soava a falso e
o sorriso era frouxo.
–
Tens de fazer alguma coisa – exigiu Zahira, seguindo com o olhar Adão que,
depois de atravessar a sala, pegara, sem cerimónia, no telefone fixo e discava
um número.
A controvérsia
foi interrompida pela aproximação de um convidado. Bela pigarreou e olhou para
o rosto corado de Zahira.
Ponderados
prós e contras, a estratégia exigia de Bela muita atenção. Não podia queixar-se.
Apesar do aparente desastre, estava satisfeita por ter permitido que a amiga e Adão
se tivessem conhecido. Quem sabe, ela esqueceria de vez a ideia fixa de
permanecer só para sempre. Enfiou um cigarro entre os lábios cor de coral e
acendeu-o. De longe procurou examinar o rosto da amiga, mas os olhos mal se
viam por causa da luz ténue e do fumo que povoava a sala.
Zahira
estava sentada no sofá, muito direita. Começava a sentir-se cada vez pior, era
como se o estômago quisesse sair das marcas. Ansiou fugir dali, pegar na
bicicleta e pedalar sem fim. Ou talvez pudesse meter um saco de papelão na
cabeça, porém isso não deveria pôr termo à depressão que começava a emergir. Quando
e como acabaria aquela maré adversa que a perseguia há meses? Uma chuvada teria
sido nociva para a festa, mas aquilo! Adão era uma afronta, que não deveria
andar por aí à rédea solta.
–
Bela, ele é teu amigo, não é? Mas é também qualquer coisa muito grosseira, que
não era suposto estar aqui. Tudo isto vai acabar muito mal.
–
Oh, meu Deus! – exclamou Adão, a babar-se. A sofreguidão com que levara o copo
à boca fizera-o entornar parte do conteúdo. – Livra! – vociferou, procurando
recompor-se.
Inacreditável.
Era a pessoa mais barulhenta que Zahira alguma vez conhecera. De repente,
decidida, ordenou à amiga:
–
Dá-me o número de telefone desse Adão.
Pela
cara, Bela percebeu que Zahira estivera a pensar em qualquer coisa, e temeu que
não fosse agradável.
–
Mas ainda não comeste nada. Anda, vamos beliscar qualquer coisa, depois
tratamos disso. – Bela puxou-lhe por um braço, contudo, Zahira estava demasiado
excitada para colocar o plano em prática e tudo o que não queria, no momento,
era pensar no estômago.
–
Que nós é que sabes fazer? – perguntou, perante o olhar inquieto de Bela.
– O
que é que queres dizer com isso?
Zahira
arrastou-a para fora da sala e deu-lhe uma corda.
–
Quero que faças um nó daqueles de tipo móvel. Como das cordas dos enforcados,
estás a ver?
Bela
fixou-a assustada. O que é que aquela louca teria em mente?
–
Não me olhes assim, que não vou matar ninguém. Vá, ao trabalho. Só te quero na
sala quando isso estiver pronto. É o mínimo que podes fazer.
Virou-lhe
as costas e deixou-a ali, de corda na mão, sem saber por onde começar. Recordou-se
do tempo em que frequentara os escuteiros. Nessa altura, fora obrigada a
aprender uma meia dúzia de nós, no entanto havia já passado tanto tempo. Era
boa naquilo, mas seria que ainda se recordava? As duas primeiras tentativas
foram desastrosas, contudo, a pouco e pouco, foi-se relembrando e, por fim, fez
o nó certo.
Bela
sentiu-se triste ao perceber que se enganara a si própria, ao pensar que Zahira
ficaria feliz com o convidado surpresa. Desanimada regressou à sala, informou
que a tarefa estava cumprida e não procurou sequer ativar a fantasia, para
imaginar o que Zahira estava a tramar, tanto mais que o sorriso perverso da
amiga a assustou.
Adão
satisfazia a gula com pedaços de queijo, quando sentiu o telemóvel vibrar.
Engoliu apressado e atendeu, ouvindo uma voz suave e insinuante:
–
Ouvi dizer que és atlético, não mo queres mostrar?
Reconheceu
a voz de Zahira, mas não conseguindo acreditar procurou-a com os olhos.
Desaparecera.
–
Então, não respondes? Parece que me enganei.
–
Não, não. Espera, não desligues! – Adão sonhava já em tocar-lhe a pele e
beijá-la como um verdadeiro macho.
Zahira
indicou-lhe onde ir e acrescentou:
–
Mas, antes de abrires a porta fechas os olhos. Essa é a condição. Se os
abrires, podes dar meia volta e desaparecer.
O
rapaz agiu como exigido e, com os olhos bem cerrados, rodou a maçaneta da
porta.
–
Entra sem medo. Não tens nada em frente. Agora, para!
Zahira
agarrou-o pelo braço, conduziu-o para um canto e fê-lo sentar-se numa cadeira.
Passou-lhe
um dedo pela cara e recomendou:
–
Mantém os olhos fechados até eu dizer.
Adão
tremia de ansiedade.
Com
cuidado, ela fez a corda passar a cabeça e atingir o tronco, depois, num gesto
rápido, apertou e fixou-a à cadeira.
–
Hei? O que é isto? Estás maluca? O que é que estás a fazer? Desamarra-me!
– Vais
ter possibilidade de sair daqui, quando a festa acabar. Até lá, mantem-te
pianinho porque senão, para além de te tirar os movimentos, arranco-te o pio.
Quita
Miguel
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