quarta-feira, 15 de outubro de 2014


O INSOLENTE


Com uma fúria zelosa, a que não estava habituada, Zahira olhou a sala, quase pronta para a festa. Foi à cozinha buscar cubos de gelo, colocou mais uma cadeira e deu uma última vista de olhos ao ambiente. Estava tudo impecável.

Ouviu um leve bater à porta, no preciso momento em que a família, que mora do outro lado da casa geminada, começava o que ameaçava ser mais uma discussão. Só esperava que não fosse interminável.

Colocou um sorriso e abriu. Era Bela que, para surpresa, não vinha sozinha. Engoliu a raiva que o inesperado sempre lhe provoca e esforçou-se por ser simpática, mas ao ver Adão agir como se conhecesse a casa, indo direito ao velho rádio de consola transformado em bar e servindo-se de uma bebida, não pôde evitar dizer, com escárnio:

– O teu amigo chegou cheio de sede.

Chocada, Bela olhou-a com reprovação.

– Como o mundo é pequeno. – Adão interpunha-se entre as amigas, ignorando o mal-estar que se instalara.

– Desculpe!? – Zahira olhou-o incrédula.

– Quando a conheci com a Bela, lá na rua do castelo, disse para comigo: «Espero vir a encontrá-la algum dia» e, agora, aqui estamos.

Zahira procurou no baú da memória, contudo os olhos negros como tições de Adão, nada lhe diziam. Fez menção de se afastar, mas o ar de censura da amiga, manteve-a por perto, prolongando os instantes de angústia até ao soar da campainha.

A sala começou a povoar-se de pessoas alegres e educadas, contrastando com a falta de modos do penetra.

Da casa ao lado, irrompeu o som de loiça a estilhaçar e fez-se um longo silêncio, quebrado apenas pelos sons violentos que Adão produzia a beber e a sugar os cubos de gelo.

A anfitriã perguntava-se que mais iria acontecer. Não queria parecer indelicada, mas assim que Adão se afastou, desta vez com um Martini na mão, dirigiu-se à amiga, manifestando a sua revolta:

– Nunca pensei que tu descesses tão baixo.

– Ele é viril e agressivo. É isso que te irrita.

– Não seja parva. Vamos encarar a situação, Bela.

– O quê? O que se passa? Queres discutir isto aqui mesmo? – A voz soava a falso e o sorriso era frouxo.

– Tens de fazer alguma coisa – exigiu Zahira, seguindo com o olhar Adão que, depois de atravessar a sala, pegara, sem cerimónia, no telefone fixo e discava um número.

A controvérsia foi interrompida pela aproximação de um convidado. Bela pigarreou e olhou para o rosto corado de Zahira.

Ponderados prós e contras, a estratégia exigia de Bela muita atenção. Não podia queixar-se. Apesar do aparente desastre, estava satisfeita por ter permitido que a amiga e Adão se tivessem conhecido. Quem sabe, ela esqueceria de vez a ideia fixa de permanecer só para sempre. Enfiou um cigarro entre os lábios cor de coral e acendeu-o. De longe procurou examinar o rosto da amiga, mas os olhos mal se viam por causa da luz ténue e do fumo que povoava a sala.

Zahira estava sentada no sofá, muito direita. Começava a sentir-se cada vez pior, era como se o estômago quisesse sair das marcas. Ansiou fugir dali, pegar na bicicleta e pedalar sem fim. Ou talvez pudesse meter um saco de papelão na cabeça, porém isso não deveria pôr termo à depressão que começava a emergir. Quando e como acabaria aquela maré adversa que a perseguia há meses? Uma chuvada teria sido nociva para a festa, mas aquilo! Adão era uma afronta, que não deveria andar por aí à rédea solta.

– Bela, ele é teu amigo, não é? Mas é também qualquer coisa muito grosseira, que não era suposto estar aqui. Tudo isto vai acabar muito mal.

– Oh, meu Deus! – exclamou Adão, a babar-se. A sofreguidão com que levara o copo à boca fizera-o entornar parte do conteúdo. – Livra! – vociferou, procurando recompor-se.

Inacreditável. Era a pessoa mais barulhenta que Zahira alguma vez conhecera. De repente, decidida, ordenou à amiga:

– Dá-me o número de telefone desse Adão.

Pela cara, Bela percebeu que Zahira estivera a pensar em qualquer coisa, e temeu que não fosse agradável.

– Mas ainda não comeste nada. Anda, vamos beliscar qualquer coisa, depois tratamos disso. – Bela puxou-lhe por um braço, contudo, Zahira estava demasiado excitada para colocar o plano em prática e tudo o que não queria, no momento, era pensar no estômago.

– Que nós é que sabes fazer? – perguntou, perante o olhar inquieto de Bela.

– O que é que queres dizer com isso?

Zahira arrastou-a para fora da sala e deu-lhe uma corda.

– Quero que faças um nó daqueles de tipo móvel. Como das cordas dos enforcados, estás a ver?

Bela fixou-a assustada. O que é que aquela louca teria em mente?

– Não me olhes assim, que não vou matar ninguém. Vá, ao trabalho. Só te quero na sala quando isso estiver pronto. É o mínimo que podes fazer.

Virou-lhe as costas e deixou-a ali, de corda na mão, sem saber por onde começar. Recordou-se do tempo em que frequentara os escuteiros. Nessa altura, fora obrigada a aprender uma meia dúzia de nós, no entanto havia já passado tanto tempo. Era boa naquilo, mas seria que ainda se recordava? As duas primeiras tentativas foram desastrosas, contudo, a pouco e pouco, foi-se relembrando e, por fim, fez o nó certo.

Bela sentiu-se triste ao perceber que se enganara a si própria, ao pensar que Zahira ficaria feliz com o convidado surpresa. Desanimada regressou à sala, informou que a tarefa estava cumprida e não procurou sequer ativar a fantasia, para imaginar o que Zahira estava a tramar, tanto mais que o sorriso perverso da amiga a assustou.

Adão satisfazia a gula com pedaços de queijo, quando sentiu o telemóvel vibrar. Engoliu apressado e atendeu, ouvindo uma voz suave e insinuante:

– Ouvi dizer que és atlético, não mo queres mostrar?

Reconheceu a voz de Zahira, mas não conseguindo acreditar procurou-a com os olhos. Desaparecera.

– Então, não respondes? Parece que me enganei.

– Não, não. Espera, não desligues! – Adão sonhava já em tocar-lhe a pele e beijá-la como um verdadeiro macho.

Zahira indicou-lhe onde ir e acrescentou:

– Mas, antes de abrires a porta fechas os olhos. Essa é a condição. Se os abrires, podes dar meia volta e desaparecer.

O rapaz agiu como exigido e, com os olhos bem cerrados, rodou a maçaneta da porta.

– Entra sem medo. Não tens nada em frente. Agora, para!

Zahira agarrou-o pelo braço, conduziu-o para um canto e fê-lo sentar-se numa cadeira.

Passou-lhe um dedo pela cara e recomendou:

– Mantém os olhos fechados até eu dizer.

Adão tremia de ansiedade.

Com cuidado, ela fez a corda passar a cabeça e atingir o tronco, depois, num gesto rápido, apertou e fixou-a à cadeira.

– Hei? O que é isto? Estás maluca? O que é que estás a fazer? Desamarra-me!

– Vais ter possibilidade de sair daqui, quando a festa acabar. Até lá, mantem-te pianinho porque senão, para além de te tirar os movimentos, arranco-te o pio.

Quita Miguel

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