segunda-feira, 23 de março de 2015

MAU AGOIRO

O despertador tocou o habitual som estridente e irritante. Iara abriu a janela. O sol mal começava a nascer. Como eram difíceis os primeiros movimentos. Foi até ao quarto de Manuel Carlos para o despertar. Olhou-o, constatando como estava a ficar crescido. Custava-lhe acordar o filho tão cedo, mas não havia outro jeito. Pelo menos, no dia seguinte seria Sábado.
Deixou o miúdo na escola e correu rumo ao autocarro. Se chegasse atrasada teria de ouvir o antipático Sr. Aurélio. Preferia deitar os bofes pela boca a sujeitar-se à lengalenga acompanhada de perdigotos.
Conseguiu picar o ponto, quando o relógio marcava as nove horas, safando-se, por segundos, ao matraquear sobre a importância de se respeitar as normas, os horários, os colegas, a empresa. Ela sabia tudo isso, mas era só uma mulher e uma mulher só, não um ser que conseguisse teletransportar-se.
O dia decorreu lento, fazendo com que a semana de trabalho parecesse não ter fim. A caminho da escola, para recolher o filho, cruzou-se com um funeral, sinal de mau agoiro para uma supersticiosa como ela. Desesperada, procurou um pedaço de madeira onde pudesse bater os nós dos dedos, mas só metal, plástico, vidro e cimento a rodeavam.
Um pouco mais à frente, viu uma pequena casa de habitação com o portão aberto. Talvez desse tempo. Num passo rápido, percorreu a centena de metros que a separava da salvação. Entrou sem pedir licença, aproximou-se da janela e satisfez a necessidade de afastar o mau presságio. 
 
 Em resposta à sua leviana batia, abriu-se a janela, revelando uma face mal-encarada. Uma voz gutural inquiriu:
– O que é que quer?
Na ausência de resposta, saiu do interior da casa um dedo esticado em direção à cara de Iara e uma ameaça:
– Ou se põe já daqui a andar ou chamo a polícia.
A mulher tentou, no seu jeito confuso de pensar, explicar e inexplicável e quanto mais falava, mais embravecia o homem, que a olhava de dentro do quarto. Acabou a justificação, pedindo desculpa e girando nos calcanhares, no momento em que ele estendia o braço em direção ao telefone.
Restaurado o sangue frio, regressou à paragem do autocarro, a tempo de verificar que o acabara de perder. O próximo só daí a uma hora, tempo de que ela não dispunha.
Ir a pé, não era opção. Contou o dinheiro na carteira: táxi não era opção. Restava-lhe telefonar para a escola e pedir, por amor de Deus, que alguém ficasse com o Manuel Carlos até ela chegar.
Ao décimo toque, uma voz enfastiada disse:
– Estou?!
Iara explicou a situação, tendo o cuidado de não revelar a causa do atraso, e obteve, como resposta ao seu pedido, uma pergunta:
– O que é que acha?
Ela não achava nada, queria apenas que lhe dissessem se alguém podia ficar com o Manuel, mas o silêncio eternizou-se do outro lado. Seria que haviam desligado na sua cara? Não, era o telemóvel que morrera para a vida. Esquecera-se de o carregar.
Desesperada, começou a pedir boleia aos carros que passavam apressados. Ao fim de algum tempo, um velhote parou e, sensibilizado com a história, prontificou-se a levá-la até à escola.
– A menina sabe, tenho este carro desde que o meu filho nasceu e nunca me deixou na mão?! Não anda muito depressa, afinal são já 40 anos e muitos quilómetros percorridos, mas devagar se vai ao longe, não é mesmo?
Iara olhava o relógio, desesperada. Os minutos corriam velozes, os quilómetros passavam lentos. Quase sentia vontade de pisar o pé que acariciava o acelerador.
– A menina está nervosa.
Ela sorriu um sorriso amarelo, constatando que, naquele preciso momento, as portas do colégio estavam a ser encerradas e o filho estaria… não concluiu o pensamento por receio do que ele pudesse criar.
O autocarro, em que ela deveria ir se se tivesse limitado a esperar, ultrapassou-os e depressa desapareceu no final da estrada.
– Eu sabia que era mau agoiro, eu sabia! – gritou para espanto do homem que a olhava incrédulo. – Cuidado!
Tarde demais. O embate foi inevitável e a boleia ficou por ali.
Quase enlouquecida saiu e começou a correr desenfreada, convocando mentalmente todos os anjos e arcanjos para a auxiliarem naquela hora de desespero. Quando curvou a última esquina viu Manuel, brincando à macaca com dois colegas, sob o olhar atento de um pai.
– Ó mamã, onde te enfiaste?
– É uma longa história, meu filho. Não sei como lhe agradecer – disse, dirigindo-se ao pai dos gémeos.
– Não se preocupe, sei bem o que é ter o tempo contra nós. Hoje por si, amanhã por mim. Vá rapazes, vamos para casa.
«Que homem simpático, afinal parece que não foi assim tão mau agoiro», pensou Iara, caminhando de mão dada com o filho.

Quita Miguel

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