quinta-feira, 15 de janeiro de 2015


PROGRAMADOR DE VIDA
 

Em pano de fundo, um aparelho de rádio sintonizava uma estação local, onde ressoava Martinho da Vila.

Edison desviou os olhos do computador e fitou o filho através das grossas lentes dos seus óculos enormes. Parecia um rapazinho tão feliz. As feições finamente esculpidas e os grandes olhos escuros, que pareciam meio sonolentos, tornavam-no ainda mais parecido com a mãe.

O que se deveria ensinar às crianças? Seria que estaria a fazer o que é certo? Pensou um momento. Existiam tantas perguntas sem resposta. Por alguns instantes, não conseguiu arredar o olhar dele, depois empurrou os óculos para cima com um dedo e voltou a concentrar-se no ecrã. Sempre que não estava a ensinar, gostava de fazer programação.

Quando terminou a primeira fase do novo programa, sentiu as palmas das mãos transpiradas. Foi até à casa de banho para se refrescar e olhou-se ao espelho. Os fios prateados misturavam-se nos cabelos castanhos, bastante ralos. Estava a envelhecer.

– Yes! Mil, quinhentos e treze! – gritou o miúdo, ao mesmo tempo que fazia a cadeira de costas altas balançar para trás e para diante. Era o seu modo peculiar de festejar a passagem de mais um nível do jogo. Levantou-se e começou a andar para trás e para diante em frente da secretária, com as mãos nos bolsos. Edison não pôde deixar de sorrir.

– Quando é que podemos lá ir? – perguntou Filipe, olhando a fotografia da casa do avô, que ocupava lugar de destaque na parede da sala.

No primeiro ano, em que viera viver para a cidade, Edison voltava à aldeia todos os fins-se-semana, mas, com o passar do tempo, foi espaçando as visitas. Eram muitos os atrativos colocados à disposição dos novos rapazes, que decidiam morar no meio do betão e, agora, eram raras as vezes que voltava a terra onde nascera.

– Não sei – respondeu Edison, sentindo-se ingrato para com quem fizera tanto por ele.

Lembrou-se de uma frase que o pai repetia com frequência: «Hoje em dia já não há consideração».

É um ser sem consideração que Edison se sente, quando pensa que não convidou o pai para o lançamento do seu primeiro jogo.

– Se quiseres, posso acompanhar-te – oferecera-se o velhote, apesar de nunca ter sequer experimentado um jogo eletrónico.

– Não precisas de te preocupar, que eu desenrasco-me. – Doía-lhe aquela frase, cada vez que a recordava.

Muitos jogos, fizera já depois daquele, mas para nenhuma apresentação convidara o pai. Primeiro, não o fizera por insegurança, depois por vergonha da sua origem e, agora, pela vergonha de nunca ter tido coragem de lhe pedir que o acompanhasse.

Passou mais um mês até que se dispusesse a enfrentar a viagem de duas horas que o separava da terra onde deixara de ser criança. Desta vez, não avisara o pai da sua chegada. Queria fazer-lhe uma surpresa.

Filipe dormia no banco traseiro, quando estacionou em frente da pequena casa de dois quartos e sala. Bateu à porta e sem esperar que o pai a viesse abrir, rodou o trinco. Viu diante de si o olhar de espanto, logo seguido por uma indisfarçável alegria.

– Que bom ver-vos. Entrem, entrem.

– Ó avô, o que é isto? – Filipe pegava num jogo eletrónico depositado na mesa da sala, em frente ao sofá. – Estavas a jogar?

O velho ficou encabulado como uma criança apanhada em falso.

– Gostas de jogar? – perguntou, por fim, Edison.

– Não é bem isso. Gostaria de conhecer um pouco mais do teu mundo. Sei que estou velho para estas coisas. No meu tempo jogámos à bola ou andávamos de carrinho de esferas, que nós mesmos construíamos. Tenho alguma dificuldade em entender estes jogos, mas o miúdo aqui do lado está a dar-me uma ajuda. Foi ele que mo emprestou e já consegui passar o primeiro nível – disse, pleno de orgulho.

– Ó avô, se me tivesses pedido, eu tinha-te ensinado.

– Eu sei que sim meu querido, mas tu nunca estás.

Edison olhou nos olhos do pai como há muito tempo não fazia, depois abraçou-o e libertou a palavra há muito sufocada:

– Desculpa. Sei o quanto estou errado por te ter afastado da minha vida para lá desta aldeia, mas não pensei que ela tivesse tamanha importância para ti. Porém, já sei o que fazer para mudar a situação.

Seis meses mais tarde, o velho ocupava lugar na primeira fila do lançamento de um produto de nicho, que se viria a revelar o maior sucesso de Edison:

– Obrigada por terem vindo. Hoje quero apresentar-vos um novo conceito de produto: «o jogo que os avós podem jogar» e a minha fonte de inspiração está sentada aqui à minha frente: o meu pai.

O jogo reproduzia as brincadeiras do século passado, aquelas que haviam feito parte da vida do pai quando conseguia correr, pular, movimentar-se com a rapidez que o tempo lhe havia tirado. Agora, poderia reviver essa época de uma forma simples e adaptada à presente agilidade dos dedos.

Quita Miguel

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