PROGRAMADOR DE VIDA
Em pano de fundo, um aparelho de rádio sintonizava uma
estação local, onde ressoava Martinho da Vila.
Edison desviou os olhos do computador e fitou o filho
através das grossas lentes dos seus óculos enormes. Parecia um rapazinho tão
feliz. As feições finamente esculpidas e os grandes olhos escuros, que pareciam
meio sonolentos, tornavam-no ainda mais parecido com a mãe.
O que se deveria ensinar às crianças? Seria que estaria
a fazer o que é certo? Pensou um momento. Existiam tantas perguntas sem
resposta. Por alguns instantes, não conseguiu arredar o olhar dele, depois empurrou
os óculos para cima com um dedo e voltou a concentrar-se no ecrã. Sempre que
não estava a ensinar, gostava de fazer programação.
Quando terminou a primeira fase do novo programa, sentiu
as palmas das mãos transpiradas. Foi até à casa de banho para se refrescar e olhou-se
ao espelho. Os fios prateados misturavam-se nos cabelos castanhos, bastante
ralos. Estava a envelhecer.
– Yes! Mil, quinhentos e treze! – gritou o miúdo, ao
mesmo tempo que fazia a cadeira de costas altas balançar para trás e para
diante. Era o seu modo peculiar de festejar a passagem de mais um nível do
jogo. Levantou-se e começou a andar para trás e para diante em frente da
secretária, com as mãos nos bolsos. Edison não pôde deixar de sorrir.
– Quando é que podemos lá ir? – perguntou Filipe,
olhando a fotografia da casa do avô, que ocupava lugar de destaque na parede da
sala.
No primeiro ano, em que viera viver para a cidade,
Edison voltava à aldeia todos os fins-se-semana, mas, com o passar do tempo,
foi espaçando as visitas. Eram muitos os atrativos colocados à disposição dos
novos rapazes, que decidiam morar no meio do betão e, agora, eram raras as
vezes que voltava a terra onde nascera.
– Não sei – respondeu Edison, sentindo-se ingrato para
com quem fizera tanto por ele.
Lembrou-se de uma frase que o pai repetia com
frequência: «Hoje em dia já não há consideração».
É um ser sem consideração que Edison se sente, quando
pensa que não convidou o pai para o lançamento do seu primeiro jogo.
– Se quiseres, posso acompanhar-te – oferecera-se o
velhote, apesar de nunca ter sequer experimentado um jogo eletrónico.
– Não precisas de te preocupar, que eu desenrasco-me. –
Doía-lhe aquela frase, cada vez que a recordava.
Muitos jogos, fizera já depois daquele, mas para
nenhuma apresentação convidara o pai. Primeiro, não o fizera por insegurança,
depois por vergonha da sua origem e, agora, pela vergonha de nunca ter tido
coragem de lhe pedir que o acompanhasse.
Passou mais um mês até que se dispusesse a enfrentar a
viagem de duas horas que o separava da terra onde deixara de ser criança. Desta
vez, não avisara o pai da sua chegada. Queria fazer-lhe uma surpresa.
Filipe dormia no banco traseiro, quando estacionou em
frente da pequena casa de dois quartos e sala. Bateu à porta e sem esperar que
o pai a viesse abrir, rodou o trinco. Viu diante de si o olhar de espanto, logo
seguido por uma indisfarçável alegria.
– Que bom ver-vos. Entrem, entrem.
– Ó avô, o que é isto? – Filipe pegava num jogo
eletrónico depositado na mesa da sala, em frente ao sofá. – Estavas a jogar?
O velho ficou encabulado como uma criança apanhada em
falso.
– Gostas de jogar? – perguntou, por fim, Edison.
– Não é bem isso. Gostaria de conhecer um pouco mais do
teu mundo. Sei que estou velho para estas coisas. No meu tempo jogámos à bola
ou andávamos de carrinho de esferas, que nós mesmos construíamos. Tenho alguma
dificuldade em entender estes jogos, mas o miúdo aqui do lado está a dar-me uma
ajuda. Foi ele que mo emprestou e já consegui passar o primeiro nível – disse,
pleno de orgulho.
– Ó avô, se me tivesses pedido, eu tinha-te ensinado.
– Eu sei que sim meu querido, mas tu nunca estás.
Edison olhou nos olhos do pai como há muito tempo não
fazia, depois abraçou-o e libertou a palavra há muito sufocada:
– Desculpa. Sei o quanto estou errado por te ter
afastado da minha vida para lá desta aldeia, mas não pensei que ela tivesse
tamanha importância para ti. Porém, já sei o que fazer para mudar a situação.
Seis meses mais tarde, o velho ocupava lugar na
primeira fila do lançamento de um produto de nicho, que se viria a revelar o
maior sucesso de Edison:
– Obrigada por terem vindo. Hoje quero apresentar-vos
um novo conceito de produto: «o jogo que os avós podem jogar» e a minha fonte
de inspiração está sentada aqui à minha frente: o meu pai.
O jogo reproduzia as brincadeiras do século passado,
aquelas que haviam feito parte da vida do pai quando conseguia correr, pular,
movimentar-se com a rapidez que o tempo lhe havia tirado. Agora, poderia
reviver essa época de uma forma simples e adaptada à presente agilidade dos
dedos.
Quita Miguel
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