ESCREVER UM NOVO FIM
O vento
fustigava as árvores, que se curvavam à sua força. Os ramos balançavam como
geridos por um maestro que marcava o ritmo. O sol começava a pôr-se naquele
final de tarde, de um dia que parecia não querer terminar. Eram assim os dias
de verão.
Xerazade
observava a luta da natureza, recordando-se da sua.
A ela o vento,
apesar de forte, não flagelava. Pelo contrário, acariciava-lhe a cara ao ritmo
da cadeira de baloiço, que fazia ranger o soalho do alpendre.
Os olhos
seguiam o movimento dos ramos das árvores e fixavam-se nas folhas. Umas
seguravam-se com a força que a seiva lhes doava, recusando-se a terminar ali a
vida. Outras, já cansadas, desprendiam-se e desciam com suavidade para atapetar
o chão.
Levou a mão à
pulseira que lhe cobria o pulso direito e passou os dedos pela inscrição:
“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode
começar agora e fazer um novo fim.” Fora essa frase de Chico Xavier que lhe
dera coragem para gritar basta e procurar um novo rumo.
Numa cama de
hospital, após mais uma das inúmeras «quedas», que a haviam tornado cliente
assídua daquela instituição, conhecera Vitória. Dividiam o mesmo quarto. Vitória
olhara-a sem crítica, até mesmo com ternura, mas deixando transparecer, sem margem
para dúvida, que não acreditava ter-se tratado de um trambolhão.
«Devemos ter a
coragem de pedir ajuda, quando não nos podemos ajudar a nós próprios», dissera-lhe
ao partir. Depois, pusera-lhe um livro entre as mãos, sorrira e desaparecera no
corredor.
Ao abrir o
livro, Xerazade encontrara aquela frase sublinhada. Vira nela a força que lhe
faltava para procurar uma saída.
Nesse mesmo
dia, denunciou o marido por maus tratos, ultrapassando a vergonha e o medo, que
a haviam mantido, por demasiado tempo, submersa da realidade.
Passou a mão
na coxa e sentiu a cicatriz. A marca permanecia ali para que nunca se
esquecesse de como fora submissa nos últimos anos. Não por um prazer mórbido de
reviver a amargura, mas para se recordar que tivera coragem de ultrapassar a
barreira que a separava da vida, porque viver sem liberdade era o mesmo que
estar morta, e ela fora um ser apagado por mais de dez anos.
A mãe dera-lhe
um nome raro, inspirada nas mil e uma noites, acreditando que ele traria a
magia à sua vida. Uma magia que se transformara em pesadelo. Uma angústia a que
tivera a coragem de pôr fim.
Por isso, o
vento a acariciava em vez de a açoitar, porque agora estava livre. Livre dos
gritos, dos estalos, dos empurrões, dos avanços incontrolados, livre do terror que
lhe tolhia qualquer reação. Tapava os ouvidos porque não lhe suportava sequer a
voz, e deixava-se ficar num canto, como um saco de pancada, até que ele se
cansasse e a deixasse em paz. Uma paz que duraria somente até à próxima vez.
Uma próxima vez, cada vez mais frequente e mais intensa.
Uma
intensidade que a catapultava ao desespero de se sentir impotente para o
enfrentar, para lhe dizer que não lhe era inferior, que era apenas fisicamente
mais fraca, mas que isso não fazia dela um ser menor. Mas as palavras
calavam-se-lhe na garganta, aprisionadas pelo soluço que procurava engolir.
Olhou a
natureza que a circundava e sorriu. Agora, sentia-se digna de a contemplar,
porque possuía a força que lhe permitia andar de cabeça erguida, olhar as
pessoas de frente, agarrar o mundo com ambas as mãos.
O coração
estava para sempre rachado e era provável que nunca se recompusesse, mas seguia
um dia de cada vez e superava, um por um, todos os obstáculos que se lhe
deparavam, porque acreditava na vida, na fé e em si.
Compreendera
que é sempre tempo de recomeçar, por isso, ao sair do tribunal no dia em que o
marido fora condenado, mandara gravar aquela pulseira. Era de madeira, pouco valiosa
em termos monetários, mas com um valor inestimável de esperança. Esperança de quem
tivera a audácia de começar a escrever um novo fim.
Quita Miguel
Sem comentários:
Enviar um comentário