domingo, 26 de janeiro de 2014


A REVOLTA DOS PINCÉIS

 
Afastou-se um pouco e observou com olhar crítico. Hum… Pequenos pormenores e ficaria perfeito. O sol começava a descer no horizonte. Sentia-se cansado, era hora de regressar a casa. Fechou a janela, desceu o estore e dirigiu-se para a porta, deixando o atelier mergulhado na escuridão. O som dos passos, em direção ao elevador, foi diminuindo até desaparecer por completo.

Por algum tempo, o silêncio foi absoluto, até que, se ouviu um desabafo:

– Não posso mais! Tenham paciência, mas não posso mais.

Um burburinho denunciou a agitação que se instalava. 

– Cobardes, vocês são todos uns cobardes. Ele decide tudo: tema, cores, luz, e vocês obedecem apáticos, como se não fosse também obra vossa.

O alvoroço aumentou, e a luz, curiosa, acendeu-se. Quem barafustava daquela maneira? O Pincel nº 4, quem mais... Era um dos mais utilizados, por isso, achava-se no direito de dizer de sua justiça. Todos falavam agora entre dentes, mas ninguém o interpelava com frontalidade.

– Estes temas estão a dar comigo em doido. Ou é a guerra, ou o desgraçadinho que vive na rua, ou o menino que não tem o que comer. Mas este homem não tem nada de positivo para mostrar? Que tal um romântico pôr-do-sol? Lamechas? Talvez seja, mas pelo menos é bonito. Estou farto que se sirva de mim para pintar a preto e cinzento. Eu quero é cores quentes, que vibrem e façam vibrar quem contemplar o quadro.

– Acho que tens razão – disse, por fim, o vermelho. – Estou quase novo. Já nem me lembro quando foi a última vez que ele me destapou.

– Eu pelo contrário estou quase no fim e vivi tão pouco. Não há dia em que ele não me esprema – lamentou-se o preto.

A pouco e pouco, muitos foram manifestando a sua opinião. A luz observava de cima sem intervir, mas olhando para o quadro, dava-lhes razão. Lá estava um menino desgrenhado, de olhar triste e roupas esfarrapadas que, de mão estendida, pedia ajuda a quem passava.

– E se mudássemos o quadro? – perguntou de supetão o Pincel nº 1, que até ao momento se limitara a ouvir.

O silêncio foi imediato. Até então ninguém pensara em agir, só mesmo em criticar, protestar e barafustar. E se fosse esse o caminho? Era possível que o que faltasse fosse apresentar ao pintor uma outra visão da realidade, uma nova perspetiva de encarar a vida, uma diferente forma de sentir.

– Bem, eu por mim estou de acordo – declarou o Pincel nº 4.

– Eu também – respondeu o vermelho, e um após o outro, todos foram dando a sua concordância.

– Hei. Esperem lá. Então e eu não tenho uma palavra a dizer? – interveio o quadro, um tanto irritado. Afinal, era dele que falavam. Não bastava dizerem mal, ainda o queriam mudar. – Eu sou o produto da criatividade de alguém, o que vocês querem fazer é crime. Vocês vão adulterar uma obra de arte. Hei! Que é isso? O que é que estão a fazer? Porque me estão a mudar a roupa?

De nada servia toda aquela oposição. Os pincéis e as tintas trabalhavam em conjunto. Vestiam-no de jeans e T-Shirt vermelha, pintavam um lindo céu azul e colocavam-lhe uma borboleta docemente poisada na mão aberta. Na cara desenhavam-lhe um sorriso e davam-lhe brilho aos olhos. O chão negro era agora de relva verdejante com flores, que o situavam numa primavera harmoniosa.

– Agora sim, agora é um quadro que me orgulho de ter pintado – afirmou o Pincel nº 4.

– Não é só obra tua, é minha também – reclamaram em coro os restantes.

Era, com efeito, uma obra de quase todos. O preto ficara de fora, mas não se importara, soubera-lhe bem o descanso.

De repente, ouviram a chave rodar na porta. Ah não! Não se haviam dado conta das horas e tudo aquilo estava um caos. Petrificados, prepararam-se para o pior. Nem a luz, com o susto, conseguiu ter qualquer reação e permaneceu acesa.

– Mas que revolução é esta? O que é que se passa aqui? – O pintor falava alto, sem conseguir compreender o que acontecera.

Via pincéis espalhados, tubos de tinta abertos, a paleta suja. A primeira reação foi pensar que havia sido alvo de um assalto, mas mirando em volta, verificou que nada faltava. Só nesse momento, os olhos pousaram no quadro.

– O que é isto? Quem se atreveu a entrar aqui só para destruir a minha obra?

– Atchim! – O amarelo, que era muito sensível e não podia estar aberto por muito tempo, não conseguira evitar o espirro.

O pintor percebeu então o que sucedera.

– Com que então, isto é uma revolta! Deixem estar, que dou já um jeito neste atentado à pintura.

Lançou mão do preto e espremeu-o até à última gota. Molhou o pincel e decidido, dirigiu-se para o cavalete. Olhou o quadro, observando cada detalhe. Era a primeira vez que o fazia, desde que entrara. Ficou ali, analisando cada pincelada, com o Nº 2 pronto a intervir a qualquer momento.

Com leveza, a curvatura da boca foi mudando de sentido e um sorriso começou a relevar-se no rosto. Decidido, avançou para o quadro e nele colocou o seu nome.

Quita Miguel

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