Uma
demão de tinta
– Hoje temos a sobremesa favorita do
avô! – anunciou a mãe com o sorriso dos dias felizes.
– E a minha também – declarou Carlos,
colocando-se de joelhos na cadeira e estendendo o prato, na esperança de ter
prioridade na distribuição do bolo.
Claro que a sorte não esteve do seu
lado. «Primeiro os mais velhos», a mãe sempre dizia. Teria de esperar. Ficou
ali, de prato em riste, até que uma fatia do bolo de chocolate deslizou na sua
direção. Estava uma delícia, como sempre, pena a mãe não o fazer mais vezes.
Havia um problema qualquer de calorias, ele nunca percebera bem o quê, mas isso
também pouco lhe interessava. O importante era que, em certas ocasiões, a mãe
se esquecia daquela ameaça invisível e produzia a sua obra-prima.
– Vá lá, toca a lavar os dentes.
Como os adultos conseguem ser
chatos. Porquê tirar já aquele gostinho tão bom? Mas, fazer o quê? Sabia que de
nada serviria refilar. Se o fizesse, corria o risco de ficar sem sobremesa ao
jantar. Então, engoliu a reclamação e correu para a casa de banho. Depois,
teria toda a tarde para brincar. Como era bom estar de férias, melhor ainda
quando os pais também estavam. Apesar de, por vezes, serem uns melgas, gostava quando estavam todos
juntos.
– Papá, queres tentar bater-me no
novo jogo?
– Tarefa impossível, mas vamos lá… –
resignou-se o pai, consciente de que iria levar uma abada.
– E tu vôzinho, não queres ver a tareia que vou dar ao papá?
– Não meu amor. Afinal, que há de
novo nisso? – respondeu o velho rindo, enquanto vestia o sobretudo. – Depois de
um almoço como este, preciso de andar um pouco.
Agasalhou-se e saiu. Apesar do frio,
o céu azul, pintado com algumas nuvens ligeiras, convidava a um passeio à
beira-mar. Puxou a gola para cima, colocou as mãos nos bolsos e fez-se ao
vento. Já não havia a quem dar as mãos, de modo que deixara de usar luvas. A
mulher não o acompanhava mais, e o neto já se achava demasiado crescido.
Alguns temerários, como ele,
passeavam-se pelo paredão, percorrendo a pé os quilómetros que ligavam Cascais
ao Estoril. Outros preferiam a bicicleta ou os patins em linha. Gostava de
patins em linha, achavas-lhes uma certa piada. Se fosse mais novo…, mas na sua
idade qualquer queda poderia detonar uma avalanche de consequências. Não
pretendia arriscar. Talvez o Carlitos um dia se entusiasmasse. No próximo
aniversário, era capaz de lhe oferecer, não asas, mas rodas para os pés.
Começou a sentir cansaço e invejou o
tempo em que as pernas colaboravam sem olhar para o relógio. Inverteu a marcha
e iniciou o caminho de regresso.

Ela desenhara-o, queria-o diferente
de qualquer outro. Ele comprara e cortara a madeira, e ambos o haviam montado e
pintado naquela cor forte. «Cor de vida», dissera ela.
Estava a precisar de uma nova demão,
talvez a filha o pudesse ajudar. Não que a tarefa fosse árdua, mas o trabalho adquiria
outro prazer e significado se feito a quatro mãos.
– Brrr…. que frio. Acompanhas-me num
cacau quente? – perguntou a filha, sentando-se ao seu lado e estendendo-lhe a
caneca fumegante. – Sabia que te ia encontrar aqui.
Como era bom sentir as mãos
aquecerem em torno da caneca.
– Olha ali! Estás a ver aquele
gigante? Vê bem se não é assim que podemos imaginar Golias? – O velho apontava
as nuvens que deslizavam no céu. – Passei muitas horas com a tua mãe aqui
sentado, vendo figuras formarem-se e transformarem-se, umas dando lugar a
outras e outras e outras...
– Coisa de artista, eu acho!
– Talvez. É bem possível que o olhar
de um artista esteja mais disponível para espelhar a imaginação. A tua mãe
ensinou-me a olhar o mundo com os olhos da beleza. Colocava o cavalete aqui,
bem em frente, e eu ficava a admirá-la, vendo os traços transformarem-se em
seres que ganhavam vida, em paisagens que nos convidavam a entrar, em cores que
nos envolviam e nos faziam acreditar que tudo é maravilhoso. Acho mesmo que a
tua mãe nunca pintou um quadro triste, melancólico talvez, mas triste não.
– A mãe amava a vida e essa era a
sua grande força. Por mais difícil que parecesse a situação ela sempre dizia: «Isto
está a acontecer porque tenho algo a aprender, se estiver atenta saberei o
quê.» A mãe era uma dessas pessoas que nunca deveria morrer.
– E não morreu, podes estar certa!
O pai pegou na mão da filha e
beijou-a. A mãe vivia através dela, através do neto, através dos quadros que
pintara e através daquele banco, que ambos haviam construído e que agora
precisava de uma demão de tinta.
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