À
FOGUEIRA
O crepitar da lenha e o cheiro a
madeira queimada invadia-lhe a sala. Luísa levantou-se e com passo pesado
dirigiu-se à janela. Na praça, as pessoas principiavam a reunir-se. Daí a pouco,
seria a vez do aroma a febras e chouriço assado se apoderar do perímetro, em
conjunto com o rumor de quem festeja.
Suspirando, fechou a janela. Era naquela
época, que se arrependia de ter comprado a casa bem no centro da vila, ali
mesmo, na praça do pelourinho. As festas comemoravam a tradição de uma origem
perdida nos anos, a vontade de se permanecer de pé, apesar de muitos fugirem em
direção à cidade.
Para Luísa, esta era uma época
triste, uma ocasião para abrir uma ferida antiga, ainda não sarada apesar dos
anos já passados.
A cada celebração dizia: «Da próxima
vez saio. No próximo ano, vou festejar com os outros.» Mas, mais um ano se
passava, e a intenção era remetida para o seguinte.
Porque é que não conseguia enfrentar
a vida com alegria? Porque evitava o convívio de pessoas felizes? Ela, que em
tempos fora o espelho onde se refletia a felicidade. Quantos anos haviam já
passado desde que, com um sorriso no rosto, saltara a última fogueira? Nove?
Não, dez. Sim, era isso. Fora há dez anos que António sumira, deixando apenas
as palavras que ela relia na folha amassada: «Perdoa-me se conseguires. Não
posso mais ficar. Adeus.»
Soubera depois que fora para a
Austrália e lá fizera fortuna. Ela ficara para trás, esquecida, e o que começara
com juras de amor eterno, havia terminado com um frio «Adeus!» escrito num papel.
Um dia, havia de conseguir libertar-se daquelas palavras, fecharia o ciclo e
estaria de novo pronta para apreciar a vida. Um dia, aquela dor iria ausentar-se.
Mas, por enquanto, Luísa permanecia ali, imóvel, olhando aquele pedaço de amargura.
A fogueira quebrava a escuridão em
redor. As chamas ondulantes elevavam-se em direção ao céu. Sem pressa,
arrastando o pé direito, Tio Zeferino foi-se aproximando. Quem era aquela
pessoa que via ali sentada perto da fogueira? A silhueta recordava-lhe alguém.
Mas quem? Rebuscou bem no fundo da memória e teve de recuar alguns anos até
conseguir dar um nome à figura.
– Mas tu não és o António? –
perguntou.
O homem limitou-se a abrir um leve
sorriso. Fora reconhecido. Também era de esperar, num meio tão pequeno, as pessoas
não esquecem.
– Pois, bons olhos te vejam, rapaz.
Pensei que nunca mais te púnhamos a vista em cima. Nem prò funeral do teu pai, tu vieste.
Começavam as críticas. Também isso
era de esperar. Ali, todo o mundo se metia na vida de todo o mundo e, pior do
que isso, achava que esse era um direito adquirido. Fora essa, uma das muitas
razões que o empurrara para longe, para um lugar onde ninguém quisesse saber o
que fazia e porque o fazia.
Também desta vez, nada disse,
limitando-se a sorrir. Não queria ser desagradável, se bem que começasse a
duvidar ter feito bem, voltar ao fim de dez anos. Olhava em redor e não se
enquadrava. Não pertencia àquele lugar, não se integrava.
Tio Zeferino foi puxando conversa,
procurando saber o que fizera António tão longe, numa terra que nem falava a
mesma língua.
– A Austrália é um mundo – acabou
por dizer António, quando percebeu que Tio Zeferino não iria desistir. – Dei-me
bem por lá. Aquela é uma terra que reconhece quem trabalha.
– Então e agora vieste pra ficar?
– Não sei – limitou-se a responder.
– Como é que um homem vem lá dos escafundós do mundo e não sabe ao que
vem? Afinal, porque é que voltaste?
– Em busca de perdão, eu acho…
António deixou que o olhar se
perdesse no bailado incessante das labaredas e não disse mais uma palavra.
A música entrava abrupta e
autoritária no quarto de Luísa. Uma música que convidava a dançar, mas que as
pernas teimavam em ignorar. Porque comprara aquela casa? Porque não escolhera
um lugar isolado, onde conseguisse ficar em paz com a tristeza, onde os outros
não se pudessem impor no seu mundo?
Foi de novo até à janela e olhou
para a praça. Um vaivém de gente animava o local. A barraca das rifas era a
mais concorrida, todos tentando a sorte. As crianças corriam animadas,
procurando, a cada volta, conseguir um lugar no minúsculo carrossel. Luísa
lembrou-se de quando tinha aquela idade. Nesse tempo jogavam à malha, saltavam
à corda ou brincavam à linda falua. Teve vontade de ser de novo criança, de
acreditar que a vida seria uma eterna diversão.
Olhou para as mãos e deu-se conta de
que continua a segurar o papel. Voltou a contemplar as crianças e sentiu pena
de si. Como se permitia sofrer daquela forma? Como podia continuar a viver no
passado?
Por uma última vez, examinou o
papel, vestiu o casaco e saiu decidida, pronta para o queimar na fogueira e assim
encerrar um capítulo da sua vida. Depois, estaria pronta para a festa.
Quita Miguel
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